O Rio já deveria ter achado um caminho


Fazer o dever de casa nas contas públicas, focar nas vocações econômicas da cidade e investir em parcerias com a iniciativa privada. É esse o roteiro traçado pelo economista Arminio Fraga para o Rio sair da crise, no primeiro capítulo da série que o colunista Fernando Gabeira conduz até 15 de novembro, data do primeiro turno das eleições municipais. Diagnósticos e soluções serão apresentados aos domingos, em conversas com cariocas relevantes dos mais variados segmentos da sociedade.

 

Arminio, estamos vivendo uma crise internacional, e o Rio é a capital de um estado castigado pela corrupção. No entanto, temos um potencial enorme, e nesse momento de eleição, apesar de tanta desconfiança, há sempre uma possibilidade de renovação da esperança. Queria começar pela sua área. Como uma política econômica pode contribuir para recuperarmos o crescimento e a autoconfiança?

O Rio já deveria ter achado um caminho depois de perder o status de capital há décadas. De fato, nós vivemos períodos tenebrosos, com mistura de controle político corrupto e incompetência. O caminho passa, primeiro, por arrumar a casa. Essa parte contábil e financeira, muitas vezes árida, não deveria ser a coisa mais complicada. Se olharmos para as três esferas de governo, 80% do gasto público do Brasil vão para previdência e folha de pagamentos. Então significa que não sobra dinheiro para nada. Seria fundamental para o Brasil fazer isso cair ao menos de 80% para 60% na União, nos estados e municípios. Segundo passo: fazer política com “P” maiúsculo quando o assunto for orçamento. Trata-se do espaço nobre da economia e da política onde prioridades são definidas. A partir daí, buscar estratégias, ir além do econômico e financeiro. Afinal, qual é a nossa vocação como cidade? Há muito tempo, eu acredito — e você, Gabeira, tem sido um campeão dessa área — que o Rio tem uma vocação verde maravilhosa que deveria ser posta em plano. Talvez o próximo prefeito vista essa camisa. Nossa vocação combina com cultura, turismo e qualidade de vida. Não consigo enxergar o Rio virando uma potência industrial. Acho que não devemos perder tempo com isso. O Rio tem que fazer uma mega aposta em qualidade de vida.

Democraticamente…

Democrática, com espaços limpos, seguros. E acho que vai surgir cada vez mais uma energia criativa ligada a todo esse mundo aos serviços em geral aqui. Tem tudo para florescer. Está faltando esse envelope de condições de trabalho, espaço, ambiente de negócios. Tem que estar voltado para o que eu acho ser nossa vantagem, que é a possibilidade de qualidade de vida sem igual no Brasil.

Além disso, existe uma vocação que é a de produção do conhecimento. O Rio tem um grande número de cientistas, de universidades, o trabalho da Coppe/UFRJ…

Exatamente… Não é ser contra a indústria, vale reforçar. Digo apenas que não vale a pena subsidiar esse segmento em uma cidade que quer oferecer qualidade de vida, medida com o ar puro das praias, por exemplo. A lógica tem que ser oposta: se vier e fizer sentido econômico ter uma indústria aqui, que venha respeitando nossos padrões ambientais. Outro aspecto: o Rio perdeu o espaço de capital financeira para São Paulo há muito tempo. Não creio que haja volta nisso, não podemos nos iludir. Às vezes, alguém aparece com a ideia de abrir uma bolsa aqui, mas não é possível. De resto, o Rio tem escala para ter tudo no mundo de serviços e ser um hub de gestão, já que, como você mesmo disse, temos boas universidades.

 

No meu entender, um valor essencial do Rio é a felicidade. Um produto intangível que poderia dinamizar a cidade, mas nem sempre isso ocorre. O Flamengo, por exemplo. Cresceu na gestão interna, avançou, mas o estado da grama do Maracanã, onde ele joga, é uma porcaria…

Mas, para que haja a felicidade geral das pessoas, é preciso voltar ao básico, que é muito problemático aqui: segurança, saúde e educação pública. Se essas áreas forem bem tratadas e sinalizarem que estão melhorando… No mundo da economia, o gerúndio é tudo, se houver tendência de avanço, a coisa engrena. Falando, por exemplo, da saúde. Enquanto o Rio tem uma experiência muito ruim com Organizações Sociais (OS), São Paulo tem uma muito boa. Se está dando certo lá, vamos olhar, temos que entender o motivo. Penso que vai ser necessário, e em muitos casos desejável, o uso de Parcerias Público-Privadas (PPPs). Algumas foram tentadas no Rio sem sucesso, muito em função do grande cupim da corrupção que estava carcomendo tudo por aqui.

Nessa área de parceria com a iniciativa privada, há possibilidades enormes abertas com o novo marco de saneamento, certo?

 

Sem dúvida. O grande nó era a questão de quem poderia dar a concessão, um conflito de competências entre estado e município que a lei, pelo visto, pacifica. Isso abre fantásticas oportunidades. O leilão lá do entorno de Maceió foi muito bom (em setembro, a BRK Saneamento, controlada pela canadense Brookfield, arrematou por R$ 2 bilhões a concessão para saneamento da capital alagoana).

Foi o primeiro leilão deste setor bem-sucedido, né?

Sim, o preço foi alto, mas o objetivo nem tem que ser arrecadar dinheiro, mas prestar um bom serviço. Não vai funcionar direito se não tiver tudo bem desenhado e monitorado. Afinal, o dinheiro é do povo, é nosso. Uma PPP do Rio que teve uma lógica foi a do Porto Maravilha. Se olharmos o Centro com os museus, o transporte e os retrofits, algumas coisas apontam em uma boa direção. Só que o que ouço de todos os urbanistas é que aquela área do Centro tem que virar um espaço de moradia.

É a possibilidade de superar a ideia de cidade dividida entre locais para trabalhar e para morar. Podemos ter tudo isso no Centro.

Fundamental superar isso, Gabeira. Hoje, cada vez mais as pessoas querem trabalhar perto de casa. E, agora, com a pandemia, em casa mesmo.

O trabalhar em casa depende de conexão também. Isso é algo fundamental em uma cidade como o Rio, que deveria ser uma cidade superconectada, não acha? Veja o exemplo das nossas crianças mais pobres com dificuldade de acompanhar as aulas na pandemia comparada àquelas que têm a infraestrutura em casa e conexão…

Esse é um tema que tem a ver com a infraestrutura. A infraestrutura no Brasil — energia, conexão, saneamento, transporte e outros — representa uma barreira ao crescimento. E, de novo, isso deveria ser trabalhado em parceria com o setor privado.

Não acha que também falta aos governos aprender com as empresas sobre assuntos que envolvam a governança?

Teve um movimento espontâneo privado produzido há uns 20 anos que atingiu as empresas. No passado, acreditava que aquilo iria contaminar o governo. Não aconteceu.

Falamos muito de parcerias com a iniciativa privada, mas considero importante falar do papel do poder público também. Hoje tenho a impressão que as pessoas que são adoradoras do estado já são mais flexíveis e que as fanáticas pelo mercado, idem. Eles não se excluem como muitos supõem. Um exemplo: a pandemia impulsionou a venda de bicicletas, que poderão agora ser usadas nas redes de ciclovia construídas pela prefeitura na cidade. São coisas que se articulam. Um lado avança e outro também…

O papel distributivo do estado é crucial em um país tão desigual quanto o nosso. Não há dúvidas. Dá para fazer muito mais em termos de política pública. E ir além do debate sobre distribuir uma renda básica. Mesmo que haja a gestão privada em muitos casos onde é possível, o dinheiro público terá que existir sempre, porque para uma massa enorme — dois terços, três quartos da população — esse acesso não poderia ser comprado com a renda que eles têm: saúde pública, segurança, transporte. Aspectos da infraestrutura que são no fundo quase que bens públicos.

Queria tocar também na questão da segurança como um propulsor de um melhor ambiente de negócios. Afinal, o que uma prefeitura pode fazer nessa área?

Acho que as pessoas vêm para cá e querem se sentir seguras. E, se nós queremos atrair o turismo, e o entendemos como uma vocação da cidade, a questão da segurança vai ter que ser abordada, sem dúvida. Lembro que nas vezes em que você foi candidato sempre bateu na tecla da importância do uso da inteligência nessa área…

A prefeitura do Rio tem uma Guarda Municipal que percorre as ruas, porém mais do que isso. Ela, assim como em outras prefeituras pelo Brasil, tem a maior quantidade de informação possível sobre a cidade e as pessoas. É um manancial pouco explorado. A partir do conceito de conhecimento, seria possível fazer uma estratégia de cooperação com o governo do estado, responsável pelas Polícias Civil e Militar. Seria uma forma de deslocar paulatinamente a visão da segurança da repressão para a informação…

Isso seria uma novidade maravilhosa, porque o modelo mais truculento não está dando certo. Veja, é claro que um policial ou um guarda municipal tem que se defender se for atacado por bandidos, e isso não está em questão. O ponto é que hoje há uma postura do governo federal de aumento do armamento que se choca com qualquer estratégia que vá por outro caminho. Essa visão armamentista pode fazer sentido no mundo rural, onde as pessoas vivem de fato isoladas e precisam ter uma espingarda porque pode aparecer um animal ou um bandido. Mas, nos centros urbanos, como no Rio, não faz o menor sentido.

É possível criar condições favoráveis para o Rio catalisar um movimento de alento nacional diante de uma crise econômica agravada pela pandemia ?

Veja o ocaso nos Estados Unidos, de Detroit (em 2013, a cidade se declarou falida por ter dívidas de cerca de US$ 15 bilhões). A cidade foi à lona e renasceu. O renascimento do Rio teria um impacto monumental no Brasil. Seria simbólico. O Rio é um espaço onde é possível uma virada que seria fonte de inspiração para muita coisa. Somos a cara do Brasil. A economia precisa trabalhar a serviço desse projeto. Entendo ser considerada uma área meio chata na essência, mas é a ferramenta para fazer políticas públicas construírem algo. Vejo o Rio com risco de uma piora além do ponto que há um retorno viável se não agirmos logo. Ou seja, de uma deterioração mais radical. E isso vem levando a uma fuga do oposto que queremos. Estamos perdendo pessoas para o exterior, para São Paulo, e esse é um sinal gravíssimo. Queremos atrair gente.