Casa das Garças

Para reduzir a dívida pública, é preciso vender patrimônio

Data: 

21/05/2016

Autor: 

Gustavo Franco

Veículo: 

O Estado de S. Paulo

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O economista Gustavo Franco se diz surpreso com a excelente qualidade da equipe econômica. Ficou acima do que ele mesmo esperava. Também está positivamente surpreso com a decisão do presidente em exercício, Michel Temer, em “sentar na cadeira, fazer o diagnóstico e assinalar o legado – que parece horroroso”. Mas Gustavo Franco faz uma ressalva para o novo time: para reduzir a dívida pública, a prioridade neste momento, será preciso ir muito além do corte de gastos. Na avaliação dele, será preciso resgatar uma agenda perdida, a das privatizações. “Só conseguirá fazer reduções relevantes na dívida pública se vender patrimônio: concessões, participações, créditos. Esse é o principal desafio, cujos termos do enfrentamento ainda não estão definidos”, diz Franco. A seguir, os principais trechos da entrevista que concedeu ao Estado.

O que lhe parece a nova equipe econômica?

Melhor do que se esperava. Assinala que haverá uma guinada drástica da política econômica na direção do bom senso.

Quais são seus principais desafios?

No Ministério da Fazenda, o comando central de todos os desafios da área econômica, é difícil hierarquizar o mais sério e o mais urgente, inclusive porque eles lá dentro estão tendo uma percepção mais fina do que é possível perceber daqui de fora. Mas, para começar, é bastante claro que enxergaram uma situação fiscal muito pior do que se imaginava – e já se imaginava uma coisa muito pior do que o conhecido. Eu acredito que eles precisam deixar isso muito claro, na partida, evitar o que aconteceu com Joaquim Levy (ex-ministro da Fazenda): sentar na cadeira e assinalar o legado. Levy não assinalou o tamanho dos problemas que herdava e ficou parecendo que os problemas foram criados por ele. Hoje a gente vê muita gente colocando no Joaquim a culpa pelos descaminhos da política econômica. Começou muito bem a nova equipe em dar uma parada e fazer o diagnóstico. O próprio presidente Temer deve fazer um pronunciamento à nação. Independentemente disso, vejo com muita clareza que é preciso estabelecer qual é o legado – e ele parece horroroso.

Do lado de fora, conseguimos prever o que pode vir ou é obscuro?

É obscuro porque as coisas mais polêmicas ficam numa área que não é bem do orçamento ou dos bancos públicos federais. Ficam ali no meio disso: são as operações criativas envolvendo bancos, fundos, Tesouro. A área que, nós técnicos, chamamos de parafiscal. É onde a Lei de Responsabilidade Fiscal tem pouco a dizer, pouco controle, e onde ocorrem as piores atrocidades. Mas a síntese, por assim dizer, do problema fiscal é o nível do endividamento público interno. Nunca tivemos uma dívida interna tão grande e tão cara. O Brasil pagou de juros, no ano passado, o equivalente a 10% do PIB (Produto Interno Bruto). Isso é algo como duas vezes o que pagou o Tesouro grego. É a maior conta de juros do mundo. É claro que isso ocorre porque o juro é alto e porque a dívida é alta. A dívida é alta demais para o Brasil. Na minha percepção, esse é o maior desafio de todos. Não há muito precedente histórico, seja aqui, seja em outros países, de desalavancagem – a redução rápida do estoque da dívida interna. Há alguma coisa que vale observar no pós-guerra, nas economias desenvolvidas. Também naquele momento era uma dívida de guerra, com caráter excepcional. Pessoas que compraram algo como bônus da vitória não estavam tão interessadas em receber do mesmo jeito que hoje os detentores da dívida pública brasileira estão.

E como resolve?

Só conseguirá fazer reduções relevantes na dívida pública se vender patrimônio. Se vender ativos: concessões, participações, créditos. Esse é o principal desafio, cujos termos do enfrentamento ainda não estão definidos. Há boas intenções no ar, mas não vimos nada operacional ainda.

Parte dos ativos em questão são aqueles que não se conseguiu privatizar lá atrás, no governo do PSDB, porque eram privatizações polêmicas. Um governo não eleito, de transição, consegue privatizar Petrobrás, Banco do Brasil, Caixa?

Tem muita coisa para fazer tirando esses três que você mencionou. Tem uma infinidade de participações do setor elétrico. O governo federal vai fazer programa de ajuda aos Estados. Tal qual fez no passado, poderá aceitar empresas estaduais em pagamento e as privatizar. Aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, pode fazer isso com a Cedae (Companhia Estadual de Águas e Esgoto). Ou seja: trata-se de o governo federal fazer o que a Petrobrás está fazendo. Sem maior alarde, a Petrobrás vendeu uma porção de ativos, sem passar pelo rito e burocracia do Programa Nacional de Desestatização. Mas é fundamental que a Petrobrás tenha agilidade para fazer isso, com o mesmo intuito que é o do governo federal: reduzir o endividamento. Isso precisa ser feito com agilidade. Esse é um desafio que perpassa todos os outros. Você precisa recompor o fluxo de caixa do governo – que é o superávit primário. Mas não é com um superávit primário de 1%, 2% do PIB que você vai reduzir dramaticamente uma dívida que já está em 73% do PIB – que é onde se encontra, por ora, a dívida bruta.

Há economistas defendendo que uma medida prioritária é reduzir o juros da dívida. Como o sr. vê essa questão?

Infelizmente, isso você precisa combinar com os credores. Aqui é preciso clareza. O Brasil, no passado, teve problemas com a dívida externa. Aí era possível, com muita facilidade, transformar um credor estrangeiro em inimigo e tornar o assunto politizado e irracional. Agora é diferente. A dívida é interna. Os credores são os aposentados de fundos de pensão, os poupadores. É impensável fazer qualquer pirueta com os títulos e suas remunerações. Quantos milhões de aposentados são remunerados por fundos de pensão? Quantos compraram papéis no Tesouro Direto? Não há o que fazer, seja reduzir artificialmente os juros ou mexer na remuneração dos papéis. Isso torna o problema do endividamento público diferente do que foi no passado. Esse tema é parte do assunto que, no fundo, pertence ao Congresso. Corte de gastos do governo e aumento de tributos ou aumento da dívida: essa é a escolha do Congresso. Se não aceitar cortes, nem elevar impostos, o Congresso estará elevando a dívida. Mas estou otimista. O Brasil está enfrentando com mais maturidade temas importantes, como a reforma da Previdência.

É ano de eleição municipal e os especialistas em Previdência dizem que, na hora de mexer em direitos, as pessoas resistem. Uma agenda impopular pode mesmo ser aprovada agora?

As coisas que se dizem impopulares são meio enganosas. A coisa mais impopular que existe em economia é errar. O que esse governo não pode fazer é errar. Mas depois que você faz uma coisa impopular do jeito certo, todo mundo gosta. O Plano Real tinha muitas coisas impopulares. É preciso ter clareza de que mais importante do que fazer coisas populares é fazer correto. Se fizer correto, o povo vai gostar.

Qual será o desafio de Ilan Goldfajn à frente do Banco Central?

A escolha dele é muito boa. Ilan é uma macroeconomista de mão cheia e participou da criação do regime de metas. Nota dez para a escolha. Agora, o BC não é o centro do problema. O desafio é fiscal. O inimigo agora é outro. Claro que, se tudo der certo no fiscal, a taxa de câmbio tenderá a se valorizar e o Banco Central de Ilan vai enfrentar o que ocorreu comigo, com o Henrique (Meirelles, atual ministro da Fazenda e ex-presidente do BC): ver a apreciação cambial, com seus efeitos, como afetar a competitividade brasileira. Mas aí tomara que esse desafio apareça: vai significar que a economia vai bem.

Há apreensão em relação à saúde de bancos de médio porte. Poderia vir daí uma surpresa desagradável?

Pode ser, sim, que haja um razoável conteúdo de estresse creditício, tendo em vista o que ocorreu no nível de atividade. Mas hoje a qualidade de supervisão bancária, o nível de capitalização, a transparência na supervisão da qualidade das carteiras de crédito nos colocam num patamar muito melhor do que em 1993, seja nos bancos público, sobretudo nos privados, onde não vejo nada muito significativo. É uma situação ciclicamente difícil, mas está longe de ser uma mega desafio como foi lá atrás.

E os bancos públicos? Há especial preocupação com a Caixa.

É verdade. O Banco Central vai ter de ver isso. No caso da Caixa, há um complicador: o FGTS. As relações entre o FGTS e a Caixa merecem um destaque, uma transparência inicial. Deveria haver mais isolamento entre uma coisa e outra. A Caixa, por outro lado, como é um banco 100% do Tesouro, é quem efetua muitas políticas de governo e coloca no seu balanço. É um problema antigo. O Banco do Brasil sempre teve um minoritário privado, atento a essas coisas. Tanto que o Banco do Brasil manteve muito mais a sua integridade operacional e patrimonial nos últimos anos. O desafio é colocar a Caixa no mesmo padrão do Banco do Brasil. Aí talvez se possa, para melhorar a sua governança, abrir o capital da Caixa – até porque o dinheiro vai ser bem-vindo.

O sr. divulgou uma nota comemorando a nova direção do BNDES…

Entre o BNDES e o Tesouro ocorreram muitas operações exóticas. Há meio trilhão de títulos transferidos ao BNDES, numa modalidade de operação parecida com a que havia entre Tesouro e Banco do Brasil, que a gente chamava de conta movimento e achava um absurdo. O principal desafio de Maria Sílvia (Bastos Marques, nova presidente do BNDES), ao sentar na cadeira, é devolver meio trilhão ao Tesouro dessas operações. É uma coisa que só executivos experientes como ela têm conhecimento para fazer.

Muitos economistas dizem que o tempo desse governo é curto para mostrar resultados. O sr. concorda?

Vou começar com um lugar comum. O tempo é relativo. É uma das variáveis econômicas mais delicadas e interessantes. O tempo pode ser ampliado conforme o horizonte de expectativas se expande. Cada boa notícia aumenta o tempo deles. Você não pode encarar o pouco tempo como uma restrição para fazer só coisas de curto prazo. Eles podem trazer coisas cujos os efeitos integrais só serão sentidos muito lá na frente. Reforma da Previdência, por exemplo. Os efeitos não são imediatos, mas sobre as expectativas, são avassaladores.

O sr. parece mesmo otimista.

Estou. Abriu-se uma janela. A gente está olhando lá para fora, ainda deslumbrados. No calor dos acontecimentos, a gente não consegue discernir as coisas, mas daqui há dez anos, quando olharmos para trás, talvez a gente perceba que esse momento foi paradigmático. As pessoas querem reformas, falam em fazer coisas ambiciosas, que eram impossíveis. De repente, o impossível parece corriqueiro.

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