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As mudanças urgentes para garantir o crescimento e o aumento de produtividade e empregos exigem do próximo governo um combate imediato à “inflação constitucional” no Brasil – o excesso de normas inseridas na Constituição que retardam ações dos governos.
É o que defende o economista Pérsio Arida, ex-presidente do Banco Central e um dos criadores do Plano Real. E, para não ficar atrás em relação a outros países, o Estado brasileiro necessita de um programa ousado para o meio-ambiente e para ciência e tecnologia, acrescenta ele.
”Que país do mundo fez auxílio emergencial mudando a Constituição?”, exemplifica Arida, que, com outros cinco especialistas, assina uma proposta para orientar as políticas econômicas do próximo governo, o documento “Contribuições para um Governo Democrático e Progressista”.
O documento sugere abrir uma exceção equivalente 1% do PIB no teto de gastos para financiar medidas na área ambiental e de ciência e tecnologia e a substituição gradual do Auxílio Brasil, por ajuda financeira com foco nos mais pobres e nas crianças. Defende, ainda, uma reforma institucional no Estado brasileiro e uma reforma tributária.
Em conversa ao NeoFeed, Arida detalhou algumas dessas propostas e sugeriu como vencer as dificuldades em sua implementação. No cenário difícil que enfrentará no ano que vem, o próximo governo terá de ter um programa claro e transparente, e medidas de proteção social capazes de “galvanizar corações e mentes”, diz, esperançoso, o economista. Acompanhe, a seguir, os principais trechos da entrevista:
Que cenário você vê, na economia, para o novo governo, em 2023?
Boa parte das economias apresenta uma atividade econômica e uma inflação que surpreenderam para cima. Se comparar com os níveis pré-pandemia, há países na América Latina que cresceram muito mais que o Brasil, como o Chile e Colômbia. O crescimento da economia, do mercado de trabalho e a inflação maior que o previsto é um quadro que acontece em inúmeros países. No ano que vem vamos entrar em um outro momento, em que os países mais desenvolvidos terão taxas de juros mais altas e isso terá um efeito de esfriar a economia mundial. O governo brasileiro encontrará um cenário externo adverso.
A colaboração das exportações de commodities inclusive para a receita do governo não deve se repetir?
O petróleo vai continuar pressionando o processo inflacionário. Mas as outras commodities são claramente dependentes de demanda, num cenário internacional adverso; do ponto de vista nosso, pelas promessas dos candidatos e a própria esperança, natural, de melhorias, o próximo governo terá um volume de demandas por gastos enorme. Com uma complicação, gerada pela aliança de Bolsonaro com o Centrão, em que ele deixou correr solto o orçamento secreto e a verba do ponto de vista partidário, eleitoral, extremamente elevada. Reverter esse quadro, restabelecer o equilíbrio na parte orçamentária entre a Presidência da República e o Legislativo é uma enorme tarefa política, complicada, que terá de ser feita.
Como?
O próximo governo tem tarefas de governança das contas públicas difíceis, de restaurar o equilíbrio sem orçamento secreto, etc., nesse cenário adverso. O lado positivo é que, se tiver uma boa agenda ambiental, o Brasil pode conseguir um resultado do ponto de vista de investimento estrangeiro muito expressivo. Não falo só dos fundos voltados ao meio ambiente, com um volume cada vez maior no mundo; inúmeras outras organizações, por seus próprios critérios de governança interna não querem investir no país que destrói a Amazônia, o meio ambiente.
É relevante, esse potencial?
Enorme. Se olhar a diferença do preço de mercado do carbono na Europa e no Brasil, tem uma enorme arbitragem a nosso favor, que pode ser explorada devidamente, mas desde que se faça fiscalização, controle. A agenda de meio-ambiente pode se revelar extraordinariamente positiva. Outro ponto que pode ser positivo para o Brasil é o fato de que temos uma tensão geopolítica crescente entre EUA, China, Europa, e o país deveria se posicionar de forma equidistante, aproveitar todas as oportunidades para incrementar o comércio, tanto na importação quanto na exportação.
Qual a agenda proposta pelo documento que divulgaram?
Precisa fazer uma reforma tributária neutra do ponto de vista de carga, que envolve redução de certos tributos e aumentos de outros. Tem de fazer um Imposto sobre Valor Agregado, basicamente na linha das PEC 110 e 45, que enfrenta uma enorme oposição da Zona Franca de Manaus. Tem o efeito redistributivo, com a tributação no destino: o Sudeste perde um pouco e o Nordeste ganha. Mas os ganhos de eficiência e a simplificação são de tal ordem que valem a pena, superam muito as perdas individuais aqui e ali.
Mais que coragem, haverá clima político para medidas difíceis como as que vocês incluem em seu documento de propostas?
É difícil saber qual vai ser o clima político, depende de quem for eleito, tanto no Executivo quanto no Legislativo, nos Estados. Minha esperança é que, quando temos um presidente com noção clara da tarefa a ser feita, ele tece acordos e alianças para viabilizar aquele caminho. No começo do Plano Real, ninguém achava que o volume de reformas que o acompanhava seria remotamente parecido com o que aconteceu.
No caso tributário, esse documento, bem detalhado, sugere compensar algumas reduções de imposto com medidas também de aprovação difícil, como alíquota de 35% no IR para renda acima de R$ 15 mil, tributação de dividendos…
A primeira necessidade na reforma tributária é justiça, e eliminação de distorções óbvias: não pode o mesmo empregado fazer a mesma coisa para o mesmo empregador e receber muito mais ou muito menos, a depender do regime fiscal em que esteja. Há algo de muito errado nisso. Várias das nossas propostas se compensam: para facilitar a empregabilidade, tem de diminuir o encargo sobre as folhas de salários.
O que é essencial nessas reformas que vocês propõem?
Os elementos-chave são três: a reforma tributária, a reforma de Estado e o modelo de proteção social. O Estado brasileiro precisa funcionar melhor, por isso a reforma de Estado está no cerne do documento. Segundo: nossa tributação é distorsiva e injusta, precisa facilitar o aumento da produtividade e corrigir a injustiça social. O terceiro ponto é que o Brasil precisa ter uma proteção social efetiva, como sociedade temos de proteger os menos favorecidos pelo destino. Para fazer essas três coisas há inúmeros aspectos, mas consideramos, entre eles, o combate à “inflação constitucional”…
O que seria isso?
Em 1988, além do básico de uma Constituição, cláusulas fundamentais, organização federativa e assim por diante, os vários lobbies da sociedade quiseram defender suas prerrogativas colocando-as na Constituição. Ficou excessivamente detalhista, e acresce-se a esse problema a quantidade muito grande de entidades que podem apelar para que mude a Constituição. Como há muitas leis que podem ir ao Supremo para se pedir sua constitucionalidade ou inconstitucionalidade, os governos têm achado mais fácil colocar alterações diretamente na Constituição.
Quais as consequências?
Acabou-se num processo de inflação constitucional que criou dois tipos de problema: falta de flexibilidade (que país do mundo fez auxílio emergencial mudando a Constituição?); e particularmente, bloqueia a velocidade de decisão econômica. Nossa ideia aqui é simples, depende de um pacto nacional: vamos desconstitucionalizar tudo que não for essencial como cláusulas pétreas, organização do Estado: vinculações, indexações, tetos de gastos…
Permaneceriam no arcabouço legal, mas sem ser artigo da Constituição, é isso?
Exatamente. Todo detalhamento orçamentário seria decidido todo ano pelo Congresso com mais liberdade. Nem entramos no detalhe das vinculações. Todos esses aspectos passariam ao status de Lei Complementar. Vai para lei complementar o teto de gastos também, a regra de ouro. Não queremos agradar A, B ou C. Num mundo com a velocidade de transformações que tem, não podemos ter que ter quórum elevado para fazer o básico na administração orçamentária.
A saída, com a abertura comercial num cenário protecionista, é pela área de ciência e tecnologia, como propõem no documento?
Na área ambiental e em ciência e educação, precisa de maior apoio estatal. Defendemos no texto um extra-teto de 1% do PIB, dos quais 0,4% para essas áreas. Olhando o que os candidatos estão dizendo e as pressões para o ano que vem, um extra-teto de 1% é muito mais modesto. Achamos que uma reforma do sistema fiscal como um todo é complexa, tem de ser feita, e, enquanto isso, tem de manter o teto, abrindo uma exceção ou outra até que o Brasil tenha um outro regime fiscal latu-sensu.
Vocês defendem os programas sociais até para garantir apoio ao futuro presidente para as reformas…
Se olhar os ímpetos reformistas mais importantes, ocorrem quando se tem uma bandeira. No governo Fernando Henrique, as grandes reformas vieram quando havia crises e se convocava a necessidade de reformas para defender o Plano Real. Lula tinha a defesa do Bolsa Família. O governo Temer tinha um peso, de reverter a recessão em que o país caía. Tem de ter algo que galvanize corações e mentes, independentemente dos méritos de cada reforma em si. Esse extra-teto tem essa função. Tem de criar desequilíbrios positivos: melhora muito uma área e se cria incentivo para avançar em outra.
Vocês propõem uma renda básica de cidadania de no máximo R$ 200, a se somar a uma poupança-família que, somada, não chega aos atuais R$ 600…
O montante do Auxílio Brasil tem de ficar igual, mas tem de ser mais bem distribuído, focalizado. Nossa ideia desse programa, as bandeiras políticas do novo governo, além de ajudar na aprovação de reformas, é mostrar um modelo, um embrião, de como a administração pública deve funcionar. Em Ciência e Tecnologia, por exemplo, quais são as medidas, quais as metas, os indicadores, quem é o responsável, quanto gasta do orçamento. Tudo tem de estar disponível, online, para todo mundo acompanhar, pressionar.
Hoje temos um Auxílio Brasil mal focalizado, mas que vai pro bolso de muita gente, e, na prática, seria substituído por valores menores, não pagos a todos que recebem hoje…
Os valores que mencionamos na proposta são sugestões, o montante total a ser gasto, não. Quando focaliza, alguém que recebe R$ 600 hoje não vai receber mais; temos de pensar em um sistema gradual de adaptação, sem mudanças abruptas, isso é sempre uma arte, o terreno da política. O Brasil funciona sempre com cláusulas de transição entre programas.
Quais a consequências para o Brasil, se não mudar o rumo na política do meio ambiente?
A Europa tem levado a agenda ambiental muito mais a sério que os Estados Unidos. Com essa lei do Biden, os EUA vão passar a levar muito a sério, também. O risco de isolamento é grande. O Brasil já teve grau de investimento. Com esse investment grade, tem inúmeros fundos, endowments que investem no país. Quando ele se perde, simplesmente parte do investimento vai embora. O drama de você se tornar um pária é que não se vê o que está perdendo, há um custo de oportunidade enorme.
E o que torna o Brasil um pária, hoje: a economia ou a política?
Um pouco das duas. Essa conversa de questionar o sistema eleitoral, as tensões com o Supremo, criaram um risco político. Cria relutância de fazer investimento. Na questão econômica, o Brasil perdeu o status de investment grade e está se tornando pária na questão ambiental. São perdas enormes, difíceis de quantificar, dinheiro que deveria estar vindo ao Brasil e não vem. Tem impacto sobre crescimento, sem menor dúvida.
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