Casa das Garças

Plano Real, 30 anos: ‘Controle da inflação criou raízes entre nós’

Data: 

01/07/2024

Autor: 

Pedro S. Malan

Veículo: 

O Globo

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No governo de maio de 1991 a dezembro de 2002, como negociador da dívida externa brasileira, na presidência do Banco Central (BC) e no Ministério da Fazenda, o economista Pedro Malan esteve desde a primeira hora na equipe que idealizou o real e depois liderou sua implantação nos oito anos seguintes, quando foi titular do ministério sob os dois governos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

Na quinta entrevista da série de conversas que O GLOBO teve com alguns dos mais importantes personagens do plano, Malan diz que a percepção da população sobre a valor da moeda estável se instalou no país, mas afirma que, dos três grandes regimes macroeconômicos, dois estão consolidados – câmbio flutuante e metas de inflação.

Mas “o regime fiscal, esse é um problema político mais complexo”.

— A ideia que, para ser responsável fiscalmente, você é irresponsável socialmente nunca me encantou. Embora ela encontre uma ampla acolhida entre nós, devo dizer, ainda hoje. E pelo jeito, continuará.

Malan lembra que não existe paralelo no mundo no que aconteceu no Brasil, “desde os anos 1950, a inflação sempre foi acima de 10% ao ano”:

—Todas as hiperinflações, aquelas europeias, eram fenômenos concentrados no tempo. Uma inflação crônica e crescente num período tão longo assim, décadas, nunca houve.

Leia abaixo a íntegra da entrevista do economista. E veja, neste vídeo, a visão de Pedro Malan sobre e legado do Plano Real e o que ainda precisa ser feito para a estabilidade da economia brasileira.

Inflação acima de 10% desde os anos 1950
“Jamais tivemos uma experiência de uma inflação que passou de 10%, para 20%, para 40%, para 100%, para 240%, para 1.000%, 2.000%, para 2.300%. A abertura de Programa de Ação Imediata (PAI, que continha os passos que seriam adotados na nova política econômica para frear a inflação), de 13 de junho de 1993, começa assim: ‘Só existem quatro países do mundo que têm inflação de mais de 1.000%, Brasil, União Soviética, Ucrânia e Congo em guerra civil’. Todas as hiperinflações, aquelas europeias, eram fenômenos concentrados no tempo. Uma inflação crônica e crescente num período tão longo assim, décadas, nunca houve. Inflação foi acima de 10% ao ano desde os anos 1950 em todos os anos. Abaixo de 10%, só nos 1940, a partir daí foi de 10% para cima.”

Legado do plano
“Passados 30 anos, a esmagadora maioria da sociedade brasileira se deu conta que a preservação da inflação sob controle é algo que redunda em seu benefício, porque ela é a preservação do poder de compra dos salários e do poder de compra dessas transferências diretas de renda, que têm assumido uma importância crescente no Brasil. Isso preserva o poder de compra do salário ou da renda.”

“Como Millôr Fernandes dizia na época da inflação alta, que a cada vez sobrava mais mês no final do salário do trabalhador. Essa percepção de que é responsabilidade de um governo, qualquer que seja a sua coloração político partidária ou ideológica, preservar a inflação sob controle, porque isso é um bem público, de interesse da coletividade, criou raízes entre nós. Eu acho que é muito difícil um dirigente do Brasil hoje ter uma atitude muito leniente, complacente e achar que não é muito problemático ter inflação alta.”

“Esse é o primeiro legado, ser uma conquista da percepção do povo. Importante é que governos tenham a responsabilidade de preservar a inflação sob controle, não porque ela seja o único objetivo ou o fundamental, mas porque ela é uma condição sine qua non para que outros objetivos, talvez mais importantes, possam ser alcançados de maneira duradoura, quero insistir aqui, duradoura como crescimento, melhoria das condições de vida da população que exigem outras coisas.”

Desafios aparecem
“Quando o real é bem-sucedido em derrotar a hiperinflação, aquilo permite que o país pudesse vislumbrar os outros enormes, inúmeros desafios que tinha pela frente, inclusive para que fosse possível consolidar um período de baixa inflação à frente. Outro foi identificar os problemas que precisavam ser enfrentados para que o país pudesse consolidar ao longo do tempo a inflação baixa ao mesmo tempo que se dirigia aos outros desafios.”

Capital político
“Logo depois que ficou claro que nós estávamos caminhando para assegurar um período de relativamente baixa inflação no Brasil, tinha algumas urgências no gradualismo, por exemplo, resolver problemas do nosso sistema financeiro, público e privado. Não foi fácil. Nós tínhamos 30 e poucos bancos comerciais estaduais. É quase como se tivesse um banco central à sua disposição, porque bancos são criadores de moeda.”

“Esses bancos emprestavam para seus governadores, para empresas do Estado que com frequência não lhes pagavam exatamente de acordo com os termos das obrigações contratuais. Tinham que fazer sucessivas reestruturações, renegociação de dívidas. Pagava algum tempo, depois, tinha que reestruturar de novo, e os bancos estavam incapacitados de conviver com o período de baixa inflação, porque eles dependiam muito da receita inflacionária”.

“Com um enorme dispêndio de capital político, devo dizer, pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, conseguimos reduzir de mais de 30 para pouco mais de meia dúzia os bancos estaduais, e todos eles sabiam que o Banco Central os liquidaria caso eles ficassem com patrimônio negativo. Nos bancos privados, dos sete ou oito maiores bancos brasileiros, nós tivemos que enfrentar situações em três: o Banco Econômico, o Banco Nacional e o Bamerindus. Muitos bancos não sobreviveram. Teve um período grande de consolidação, mas era uma urgência no gradualismo que tinha que ser feito.”

“Houve a renegociação de dívidas dos estados que estavam com problemas sérios. Reestruturamos a dívida da esmagadora maioria. O governo federal assumiu a dívida, reestruturou por 30 anos, impôs condições que eles tinham que dedicar uma parcela da sua receita corrente líquida ao pagamento da dívida sistematicamente. A partir daí, reestruturamos as dívidas de 25 dos 27 estados brasileiros e de 180 municípios. Isso tudo, ainda nos anos 1990. Tanto é que eu achei que nós tivéssemos equacionado esse problema até onde a vista alcançava. Foi verdade para o sistema financeiro. O sistema financeiro privado brasileiro é visto hoje como sólido”.

Situação dos estados
“E eu achava que tínhamos resolvido a questão dos estados também e um dos grandes desafios que nós temos agora é enfrentar a situação dos Estados. Temos essa tragédia monumental que está acontecendo agora no Rio Grande do Sul, que vamos demorar anos e anos e anos de reconstrução do Estado a um custo alto, mas que tem que ser enfrentado.”

400 dias que mudaram o Brasil
“No dia 13 de junho de 1993, nós lançamos o Programa de Ação Imediata que merece ser lido hoje e que diz tudo aquilo que nós achamos que tinha que ser feito, além de derrotar a hiperinflação, que era o fundamental, o desafio da hora, Outro texto é a exposição de motivos, de 7 de dezembro de 1993 e que tinha três pilares: assegurar a situação fiscal menos desequilibrada no biênio 1994/1995 e apresentava todas as propostas de emendas constitucionais. E isso tudo foi apresentado como o segundo pilar da exposição de motivos de 7 de dezembro de 1993. O último pilar era a reforma monetária”.

“Eu só queria lembrar uma coisa que é um tema que me é caro. No dia 29 de novembro de 1993 nós tínhamos assinado, em nome do governo brasileiro, os termos finais definitivos do acordo de negociação da dívida externa (Malan foi o negociador da dívida externa de 1991 a 1993), que, junto com o PAI e com a exposição de motivos logo depois, foi uma coisa muito importante para criar um clima positivo e favorável em relação ao Brasil. Foi um conjunto de coisas que foram sendo feitas num contexto adverso. Foram 400 dias de trabalho. Esses 400 dias mudaram o Brasil.”

Crescimento baixo
“Eu acho que o crescimento da economia nesse período, alguém pode dizer que foi pouco. Mas lembra que na década anterior, 12 anos anteriores, entre 1981 até 1992, nada mais nada menos que em sete anos (1981, 1982, 1983, 1988 e 1990, 1991, 1992), o PIB per capita caiu. Foram sete em 12 anos (de queda), além da inflação. Era uma combinação certamente não muito favorável para o crescimento e para o aumento da produtividade da economia.

Social X Fiscal
“Acho que, dos três grandes regimes macroeconômicos, nós consolidamos ao longo dos últimos 25 anos o de metas de inflação e o regime cambial de taxas flutuantes. O regime fiscal, esse é um problema político mais complexo. E devo dizer que, desde o início, o principal partido da oposição à época (PT) manifestou de público, em termos escritos, dizendo que a Lei de Responsabilidade Fiscal precisaria ser radicalmente modificada, porque não era possível que a responsabilidade fiscal impedisse a responsabilidade social, o que eu sempre achei um erro notório.”

“Não há nenhuma razão para que um governo não possa ser simultaneamente responsável fiscalmente e preocupado com as suas responsabilidades sociais. São duas coisas que têm que ser analisadas em seu conjunto, o que remete a questões de escolha de prioridades. E é uma discussão política essencialmente sobre escolhas que todo o governo é obrigado a fazer. A ideia que, para ser responsável fiscalmente, você é irresponsável socialmente nunca me encantou. Embora ela encontre uma ampla acolhida entre nós, devo dizer, ainda hoje. E pelo jeito, continuará.”

Orçamento engessado
“Dos nossos gastos públicos, 93% deles são gastos que o governo está obrigado a realizar por preceito constitucional ou legislação. Sobram 7%, que são os chamados gastos discricionários. O governo não pode decidir livremente, a não ser que faça mudanças constitucionais ou de leis complementares. Os Estados Unidos têm duas grandes categorias de gastos: os discricionários e os mandatórios, que são definidos por lei. No início da década dos 1960, os discricionários eram duas vezes e meia os mandatórios. Hoje é o contrário. Mesmo assim, os discricionários lá são uns 30% do total, que são passíveis de serem realocados em função das prioridades. Aqui no Brasil, o que o governo tem de capacidade de decisão é sobre 7% do total e as demandas continuam chegando, são inúmeras.”

“Uma das coisas que nós conseguimos no real foi o Fundo Social de Emergência. Era uma desvinculação de receita, uma maneira de lidar com o excesso de vinculação da receita a um determinado gasto. Você não tem essa capacidade que parlamentos em outros países do mundo têm de, quando discutem o orçamento, pensar como vou redistribuir aqui em função das prioridades do momento. As prioridades do momento vão se superpondo umas às outras, como se fossem camadas geológicas. Têm interesses constituídos ali. O Everardo Maciel (secretário da Receita Federal no governo de Fernando Henrique Cardoso) costumava dizer que não tem nenhuma linha no Orçamento que não tenha um pai, uma mãe, um tio, uma tia, um avô, uma avó, uma família de interesses.”

“Você vai lá mexer, imediatamente os interesses ali por trás daquela linha se expressam vocalmente. Alguns são muito vocais, mas isso faz parte do jogo da política. Era muito importante que isso fosse discutido mais abertamente. Estamos com uma rigidez extraordinária que dificulta o reordenamento de gastos. Isso vai ter que ser discutido, espero que ao longo dos próximos três anos.”

Transição democrática
“Teve uma grande lição ali que eu faço questão de registrar aqui que é a passagem do governo Fernando Henrique Cardoso para o governo Lula, eleito. Nós tivemos uma transição absolutamente civilizada ali, que eu acho que serviu muito bem ao país. Nós mostramos a nós mesmos e ao resto do mundo que o Brasil podia, como é próprio de democracia, ter uma alternância de poder, resultado das urnas, sem que houvesse assim grandes rupturas, reinvenções de roda, experimentos jamais testados que foram ali tentar.”

“Aquilo serviu muito bem ao Brasil e explica uma das razões, além do contexto internacional extraordinariamente favorável e da preservação da política macroeconômica do governo anterior, porque mostrou para o mundo que o Brasil está se tornando um país não só mais maduro do ponto de vista político, institucional, mas mais previsível, racional do ponto de vista da condução da política macroeconômica. Foi um legado assim do real, que eu achei que tinha estabelecido um precedente para futuras transições, quaisquer que fosse o seu resultado. Infelizmente, foi uma esperança não totalmente validada, digamos assim.”

Mundo mais complicado
“O mundo ficou mais complicado, mais incerto e mais perigoso, tanto do ponto de vista da discussão sobre economia quando se toma uma perspectiva de médio e longo prazo, como acho que é necessário fazê-lo agora, como também no da geopolítica global, perspectivas de crescimento do comércio mundial.”

Pensando o futuro
“Eu estou convencido que o caso brasileiro, se você juntar demografia, urbanização e seus efeitos sobre outras demandas, vai ser um estudo de caso de relevância global, porque nós tivemos um período dos anos 1950 até os anos 1980 que a população total crescia a 3% ao ano e a urbana, 5% ao ano. Em 1985, São Paulo era a terceira maior cidade do mundo, já o Rio de Janeiro era a oitava. Hoje, São Paulo continua disputando a terceira e quarta posição com a Cidade do México, mas o Rio de Janeiro passou para 20º.”

E não é preciso nenhum esforço de imaginação para pensar o que significa uma população urbana que está crescendo 5% ao ano em termos de demandas sobre infraestrutura básica, de energia, de transporte dos transportes urbanos, de comunicações, de infraestrutura humana, habitação. Nós estamos envelhecendo numa velocidade extraordinária. Nossa população vai parar de crescer no final da década dos 2030 e nos anos 2040 vai começar a declinar. A população de mais de 60 anos, em 2050, vai ser 30% da população, e com mais de 65 anos, 25%. Isso é um enorme dispêndio de crescimento exponencial com gastos em saúde para uma população que envelhece.”

“E essa discussão raramente não tem lugar entre nós, assim como nós vamos ter de ter, pelo menos, mais uma ou duas mudanças na Previdência Social, uma já final dessa década e início da próxima e depois mais uma na outra década. O número de aposentados no Brasil está crescendo cinco vezes mais rápido do que o crescimento da população. Isso é um problema de longo prazo que tem implicações que não são triviais, que a gente não discute aqui. É importante que nos próximos três anos, mas não apenas neles, a gente comece a discutir mais a sério essas questões e que sejam levadas em conta nas decisões. Embora sejam problemas de médio, longo prazo, mas eles já estão contratados, essa área demográfica e crescimento de urbano.”

“Demografia é um exemplo só. Outra é tecnologia. Eu acho que a tecnologia hoje é o elemento definidor da posição que um país terá no futuro, além de demografia e de urbanização. E a combinação dos dois tem um efeito sobre o emprego monumental, que é uma coisa que a gente deveria estar estudando com muito mais profundidade, embora tenha gente muito competente trabalhando com isso no Brasil, mas é menor do que eu gostaria. Pessoas vão ter que estar se adaptando ao mundo novo do mercado de trabalho e agora com inteligência artificial.”

“Então esse processo, que já vinha em grande velocidade, vai se acelerar ainda mais. O mundo está mudando numa velocidade vertiginosa e, às vezes, eu acho que a gente se perde aqui numa discussão sobre o passado, sobre o curto prazo. O foco em larga medida é o que vai acontecer em 2026. Se a gente focar excessivamente no horizonte de curto prazo e, para mim, a perspectiva de três anos é curto prazo, a gente está perdendo a oportunidade de lançar agora coisas que possam ajudar a resolver os problemas de médio e longo prazo.”

Papel da política
“O real dificilmente teria ocorrido, não fora o fato que teve uma pessoa (Fernando Henrique Cardoso), um político com larga experiência política, com largo trânsito no Senado e na Câmara dos Deputados, que é conhecido de longa data, habilidoso nisso e na comunicação com a sociedade em geral e que foi capaz de reunir em torno de si pessoas que já o conheciam e respeitavam de longa data, que ele conhecia e respeitava de longa data. Tinham partidos razoavelmente organizados, tinha o PSDB, que era o partido do próprio Fernando Henrique, tinha o PFL, a presidência da Câmara.”

“A política está sempre presente. Agora, eu acho que tinha inconscientemente a ideia de que a maioria da população brasileira gostaria de ver se livre do flagelo inflacionário. Tanto é que o Fernando comenta, às vezes com muita graça, que ele percebeu que ele ia ser eleito presidente quando ia a comícios e as pessoas estavam brandindo uma notinha de R$ 1 no começo. Ele achou que aquilo ali era uma coisa que a população atribuía um enorme valor. Tanto assim que o conduziu por duas vezes no primeiro turno à Presidência da República, acho que em larga medida derivado desse fato. Mas, em suma, para responder a sua pergunta, é claro que a política é fundamental e sempre as interações com a economia política e o contexto institucional também.”

O que espera para o país
“Eu sonho ver um país, uma democracia consolidada e que pudesse lidar com aquilo que eu considero que é o nosso maior desafio, aquilo que nós vamos ser no futuro. O nosso grande problema chama-se educação. A minha primeira prioridade é a educação, a segunda educação, a terceira educação, se nós queremos caminhar para ter uma democracia, uma economia mais produtiva, mais eficiente, com menos desigualdade de oportunidades. É o meu sonho. Eu não verei porque estou nos meus últimos anos de vida, mas eu espero que, se não meus filhos, meus netos possam ver isso um dia no futuro.”

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