Proposta de super-regulador no mercado de capitais é ‘padrão ouro’


Proposta de ampliar escopo de atuação de BC e CVM é bem recebida por especialistas

Valor

O projeto em discussão no Ministério da Fazenda que introduz no Brasil o chamado modelo “twin peaks” seria uma “evolução muito positiva e reconhecida como padrão ouro de arquitetura” do sistema regulatório e de fiscalização, na avaliação de Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central (BC). Pelo projeto, BC e Comissão de Valores Mobiliários (CVM) se tornariam “superórgãos” reguladores, responsáveis por monitoramento, regulação e supervisão dos mercado financeiro, de capitais, além de seguros e previdência.

“A mudança faz todo o sentido num mundo onde tem tanta inovação, onde existem instituições financeiras em vários formatos, desde grandes conglomerados até fundos, e também levando em conta os grandes temas, a saúde sistêmica de um lado e, do outro, a proteção dos investidores e da integridade do mercado”, diz Fraga. “A mim, parece ser excelente. Tem vantagem de trazer foco aos dois espaços regulatórios e fiscalizatórios.” O ex-presidente do BC recorda que, durante sua gestão à frente da autoridade monetária, no governo Fernando Henrique, o assunto chegou a ser discutido e algumas medidas de transferência de funções para CVM e Susep até foram adotadas.

O modelo em discussão na Fazenda não mudaria a autonomia operacional do BC, já estabelecida em lei, e se espelha no formato do Reino Unido. Atualmente, no Brasil, BC, CVM e Superintendência de Seguros Privados (Susep) atuam em regulação e supervisão prudencial do mercado financeiro, de capitais e de seguros, e na supervisão de condutas e da proteção dos consumidores nesses mercados, o que, para especialistas, cria sobreposições de funções e impede uma atuação mais firme dos órgãos na supervisão sistêmica e no monitoramento de condutas irregulares.

Para tornar a divisão mais clara, a Fazenda estuda incorporar a Susep ao Banco Central. Em um segundo momento, a CVM ganharia atribuições que hoje são do BC, e a autoridade monetária, funções atualmente de competência da CVM. O Banco Central passaria a concentrar as atividades de regulação e supervisão prudencial do mercado financeiro e de capitais, bem como o comando da política monetária. E a CVM ficaria com regulação e supervisão de condutas dos dois mercados, incluindo o bancário. A Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc) também pode entrar nesse redesenho.

A proposta, que seria implementada por meio de lei complementar, prevê que o BC passaria a dispor de autonomia financeira. Fraga afirma, porém, que é preciso discutir a questão com cuidado. Para ele, o ideal seria o orçamento de BC e CVM permanecerem dentro do federal, repensado numa reforma maior. Na ausência dessa discussão mais ampla, afirma, já seria um bom começo o debate de autonomia financeira em andamento. “A CVM vem sofrendo de fome extrema há muito tempo.”

Fraga, no entanto, prefere não propor um modelo porque, afirma, “não há uma solução mágica” e frisa que é preciso adotar regras de governança com mecanismos de controle sobre as decisões. “O BC não só tem preocupação de zelar pela saúde do sistema. Ele próprio precisa ter saúde econômico-financeira. Nesse mundo cada vez mais complexo, não é barato fazer supervisão do sistema de maneira adequada.”

A possibilidade de o valor arrecadado com taxas e multas ficar nos próprios órgãos, em vez de ir para o Tesouro, como é hoje, também é vista por reservas por Fraga. Hoje, a CVM arrecada cerca de R$ 1 bilhão por ano somente com a cobrança de taxas dos regulados, mas seu orçamento discricionário está limitado a R$ 30 milhões. “Existem prós e contras. Essa solução traz risco de o governo pressionar agências por resultados para arrecadar. Há que se pensar em uma forma mais estruturada.”

O ex-presidente do BC ressalta que o país sofre com falta de recursos para políticas públicas. “Não é trivial porque estamos falando de uma solução que tira um item do orçamento de um país carente, em que falta recurso para tudo quanto é lado. Por convicção, acredito que o orçamento do país deve ser um só, mas entendo que pode funcionar bem uma agência sob um outro regime jurídico desde que haja mecanismos de controle.”

Marcelo Barbosa, que foi presidente da CVM de agosto de 2017 a julho de 2022, diz que a proposta, em tese, pode resultar em maior eficiência. “A evidência empírica dos casos de reformas semelhantes é recente e não muito ampla, mas é possível imaginar que seria um avanço.” Ele faz questão de frisar que é favorável ao projeto, mas ressalta que será preciso mais que uma reorganização institucional com rearranjo de atribuições. Para ele, sem a efetiva autonomia financeira e a solução para a grave carência de pessoal, nenhum arranjo produzirá resultados satisfatórios. “Tanto no Reino Unido quanto na Austrália, que são os casos mais conhecidos de modelos em que o projeto se inspira, os reguladores contam com recursos humanos e financeiros adequados.”

Barbosa defende que a questão financeira seja resolvida revertendo a arrecadação com a taxa de fiscalização ao financiamento do regulador. “Esses recursos vão para o Tesouro. O governo dará uma importante demonstração de suporte ao fortalecimento do mercado se corrigir essa disfunção.” Segundo ele, resultaria em melhoria de infraestrutura, sistemas, treinamento e capacitação.

Para Hertz Leal, ex-diretor jurídico do SindCVM e servidor da autarquia, há apoio a medidas que modernizem e reorganizem os órgãos reguladores do mercado financeiro e de capitais, como a implementação do modelo “twin peaks”. Ele disse entender ser importante “a participação dos servidores públicos, dos seus respectivos sindicatos e da sociedade”. “Uma nova organização das autarquias também pode e deve dar suporte necessário para nossa atuação com mais eficiência e efetividade”, considerou Leal.

Em sentido semelhante avaliou Fábio Faiad, presidente do Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central. Para ele, o modelo pode ser positivo “desde que o debate não seja açodado como fizeram com a PEC do BC”.

O professor de direito comercial da USP Carlos Portugal, que foi membro do Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (“Conselhinho”), acredita que o sistema não é necessariamente mais eficiente. Para ele, a eventual sobreposição de atribuições do BC e da CVM no Brasil traz uma visão dupla que ajuda a regular novos mercados. “A lógica de ‘twin peaks’ faz sentido em um ambiente em que as pessoas têm muita desconfiança do regulador. Acho que no Brasil não funcionaria, e esse é o problema de tentar importar um modelo para outro contexto”, avalia.

Na avaliação de Flavio Rodrigues Bocater, especialista em previdência complementar fechada e sócio do Bocater Advogados, a possível agregação da Previc preocupa. “Vejo com olhos críticos essa proposta, uma vez que coloca no mesmo ambiente de regulação instituições que têm naturezas diferentes. Os bancos têm uma preocupação ligada à liquidez, o que não acontece com seguros e fundos de pensão”.