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Parece haver consenso que não se pode pensar em recuperar a confiança e destravar a economia sem reverter o déficit público. Cortar gastos é politicamente difícil, legalmente complexo e socialmente penoso. Como ninguém se elege prometendo apenas sangue, suor e lágrimas, os candidatos acabam por minimizar a gravidade dos problemas e apresentar proposta irrealistas. No entanto, o avanço da tecnologia digital tornou viável uma iniciativa relativamente simples, que pode reduzir custos, eliminar a burocracia, facilitar o acesso aos serviços públicos e ainda aumentar a produtividade e a inclusão social. Trata-se da criação de uma plataforma digital nacional.
O verdadeiro inferno a que está submetido todo cidadão obrigado a se relacionar com o Estado, tanto para cumprir suas obrigações como exercer seus direitos, é um dos grandes fatores de redução do bem-estar e da qualidade de vida. O cipoal de trâmites burocráticos da vida contemporânea é um suplício para o trabalhador e grave detrator da produtividade das empresas. Segundo estudo recém-publicado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, BID, em média, na América Latina, o número de horas gastas para completar um trâmite burocrático é de 5,4 horas. Ou seja, para registrar um filho, tirar um documento de identidade ou de habilitação para dirigir, perde-se, em média, 5,4 horas. No Brasil o tempo médio gasto é de 5,5 horas, um pouco acima da média da América Latina e mais do dobro do exigido no Chile.
O tempo perdido é o componente mais relevante do custo de um trâmite burocrático, mas não é o único. Também o número de repartições e guichês pelos quais se é obrigado a passar, a quantidade de documentos que devem ser obtidos e apresentados, o número de formulários a serem preenchidos, ou seja, a complexidade de todo o procedimento exigido, é também determinante do custo burocrático. No Brasil, 28% dos trâmites oficiais exigem mais de três iterações, ou seja, é preciso ir ou voltar mais de três vezes a algum guichê. E somos também pródigos em número de trâmites: só na esfera federal, existem 1.740 procedimentos burocráticos.
Quando feitos on-line, por meio da internet, os trâmites burocráticos são simplificados e custam muitíssimo menos. Ainda segundo o BID, os trâmites digitais na América Latina são, em média, 74% mais rápidos e custam menos de 5% do custo dos trâmites presenciais. Por isso, no Brasil como em quase toda parte, já está em curso um processo de digitalização. Muitos procedimentos burocráticos já podem ser ao menos iniciados através da internet.
Em 2017, a percentagem dos trâmites que já podiam ser iniciados on-line no Brasil era de 75,4%, muito próxima dos 81% observados para a União Europeia. Já o percentual de trâmites passíveis de serem integralmente feitos por via digital era de apenas 35%.O acesso à internet e o nível de escolaridade da população estão entre os fatores que explicam a dificuldade para se ter procedimentos integralmente digitais, mas o grande empecilho para a completa digitalização é a impossibilidade de prescindir da presença do interessado.
A presença é exigida para garantir a identificação. É a necessidade de saber se a pessoa é realmente quem afirma ser que exige todo tipo de garantias. Em nome de reduzir fraudes, criam-se exigências burocráticas e a presença se torna indispensável. A existência de uma identificação segura, única e universal reduziria a burocracia, não apenas no relacionamento com o Estado, mas também nas relações comerciais. Todos os procedimentos, nos serviços, no comércio e no sistema financeiro, seriam simplificados.
Pois já existe uma forma de garantir a identificação digital segura. O verdadeiro ovo de Colombo da desburocratização é a plataforma única de identidade digital legal. A Estônia, depois de se tornar independente da antiga União Soviética, no início dos anos 1990, foi o país precursor da digitalização e o primeiro a adotar uma plataforma única de identidade legal.Hoje, absolutamente tudo, com a exceção de se casar e se divorciar, pode ser integralmente feito por via digital na Estônia. O país oferece, até mesmo, a cidadania digital para empresas que querem lá se instalar.
A Estônia é um país pequeno, com menos de dois milhões de habitantes, de população homogênea e educada. É claro que as dificuldades para a digitalização por lá são menores do que em países grandes e desiguais como o Brasil. Por aqui, entretanto, também os benefícios e os ganhos de produtividade advindos da digitalização são potencialmente muito maiores. Este é o caso da Índia, por exemplo, que já há alguns anos vem trabalhando na direção da digitalização. A plataforma digital única de identidade nacional na Índia, chamada Aadhaar, que começou a ser implantada há pouco mais de cinco anos, é a base sobre a qual o país avança na direção da completa digitalização.
A experiência da Estônia e da Índia mostram o caminho a ser percorrido. A partir da plataforma nacional de identidade digital, cria-se novas camadas de serviços digitais integrados. O estágio seguinte é o da assinatura digital, que substitui os cartórios analógicos. A partir dela é possível requisitar e receber documentos, assim como firmar contratos e transferir propriedades. Todo tipo de trâmite legal, como registros, certificados e obtenção de licenças, assim como o pagamento de impostos, o acesso aos benefícios sociais, inclusive previdenciários, podem ser gradualmente incorporados à plataforma. Na Índia, menos de cinco anos desde a introdução do sistema, o número de autenticações digitais teve um crescimento exponencial e chegou a mais de 1,5 bilhão por mês no final do ano passado. O número total de documentos emitidos digitalmente na plataforma já era superior a 2,4 bilhões.
É fundamental que a plataforma digital seja única. É, portanto, necessário que a iniciativa tenha uma coordenação interministerial. Todos os órgãos públicos devem estar interligados numa única plataforma nacional. Garante-se assim que nunca mais será exigido do cidadão que informe o que já é de conhecimento do Estado. Nunca mais será preciso ir à Polícia Federal, apresentar certidão de nascimento, certidão de casamento, título eleitoral, atestado de reservista e depois ainda ter que ir ao Banco do Brasil pagar uma taxa, para renovar um passaporte.
A plataforma digital nacional deve ter arquitetura aberta, portanto, a sua utilização não fica restrita à transações entre o cidadão e o Estado. É acessível também para as transações entre os indivíduos e ou entre entidades privadas. É um serviço público, aberto a todos. O seu potencial simplificador, de redução de custos e de ganhos de produtividade em todos os setores, é verdadeiramente revolucionário.
A concentração e a falta de competição do sistema bancário brasileiro é conhecida. Seu efeito sob a escassez e o custo do crédito é notório. Tão ou mais grave, apesar de bem menos conhecido, é o seu efeito sobre o custo do sistema de pagamentos. As tarifas, cobradas no sistema de pagamentos brasileiro, são as mais altas do mundo. Ao acoplar um estágio de pagamento digital à plataforma nacional, revoluciona-se o sistema nacional de pagamentos, tornando-o muito mais rápido, eficiente e competitivo. Através da identidade universal única, os indivíduos são identificados por qualquer instituição de pagamento, sem necessidade de informar suas contas. Os pagamentos podem ser feitos instantaneamente, para a conta de qualquer indivíduo, em qualquer instituição interligada, através de qualquer
dispositivo com acesso à internet, com mensagem de confirmação praticamente imediata.
Um ano e meio depois da introdução do estágio de pagamentos digitais na Índia, em meados de 2016, o sistema já superou o sistema de cartões de débito e crédito, tendo atingido perto de 200 milhões de transações por mês. Num país como a Índia, onde a penetração do sistema bancário é relativamente baixa, o processo acelera a chamada “bancarização” da população. No Brasil, muito mais avançado na penetração bancária, o sistema deverá acelerar o fim da moeda papel. O futuro do sistema monetário é ser integralmente escritural. A moeda digital vai reduzir os custos e aumentar a eficiência do sistema de pagamentos.
A plataforma digital nacional única não se limita a eliminar a burocracia e reduzir custos. Abre um novo universo de possibilidades. Pode armazenar todo tipo de informação relativa ao cidadão, desde as financeiras até as médicas. No atendimento médico, por exemplo, o acesso ao histórico do paciente, sobretudo nas emergências, pode ser vital. É justamente esta possibilidade de armazenamento de todo tipo de informação que provoca receio em relação à privacidade.
Como atesta a dificuldade enfrentada para aprovar o Cadastro Positivo, muitas resistências terão que ser vencidas. O receio de que uma plataforma digital única possa abrir o caminho para o Estado todo poderoso, o Big Brother, de Orwell, embora compreensível, não tem fundamento. A tecnologia permite que os dados guardados na plataforma nacional sejam de propriedade do cidadão e só acessíveis por ele, ou a quem ele autorizar o acesso. De toda forma, a sua implantação exigirá um esforço de informação e de educação da população, para que não haja dúvida sobre a integridade e a inviolabilidade do sistema. Havendo dados, e hoje os dados são ubíquos, haverá sempre o risco de que sejam mal utilizados. Melhor que estejam ordenados e disponíveis para o cidadão, que poderá decidir como utilizá-los. A tecnologia já existe, está disponível e o investimento exigido é relativamente baixo.
Quando o país se defronta com a inevitabilidade de sacrifícios, obrigado a fazer as reformas que deveriam ter sido feitas no século passado, a plataforma digital nacional é uma proposta relativamente simples, de baixo custo e verdadeiramente revolucionária. Uma iniciativa que eliminaria a burocracia, aumentaria a produtividade e abriria as portas para o ingresso do país no século XXI.
André Lara Resende é economista e assessora a campanha de Marina Silva (Rede) à Presidência
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