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A saúde privada no Brasil está no centro de um intenso debate, ao mesmo tempo técnico e repleto de interesses políticos e comerciais, o que dificulta a compreensão do que está em jogo. O que chega à opinião pública são planos de saúde alegando desequilíbrios financeiros. Chegam também reajustes altos e recorrentes nas mensalidades e rompimentos unilaterais de contratos, o que reforça a impressão de que passamos por uma grave crise. Mas quais seriam seus fundamentos? As evidências indicam que o setor passa por grandes mudanças e enfrenta uma turbulência conjuntural, não uma crise estrutural – ainda.
Pelo lado conjuntural, houve grande turbulência por conta da pandemia. Muitas operadoras tiveram custos baixos em 2020, mas entraram em resultado operacional negativo a partir de 2021 por conta de demanda represada. A resposta veio por meio de reajustes altos e rescisões unilaterais. Dados mais recentes, no entanto, indicam cenário de recuperação.
Pelo lado estrutural, têm ocorrido mudanças relevantes no mercado, com entrantes e novos modelos de negócio, fusões e aquisições, investimentos internacionais e alavancagem de grandes grupos. Mesmo antes da pandemia, grandes empresas do mercado de planos começaram a perder espaço, enquanto novos grupos passaram a crescer, principalmente aqueles com operações verticalizadas – em que plano e rede própria de prestação de serviços são integrados e o alinhamento de incentivos permite redução de custos e preços ao consumidor. A capacidade das empresas de reajustar mensalidades dos planos coletivos diminuía a cada ano. Para além de crise ou turbulência conjuntural, portanto, o que observamos são mudanças no padrão de concorrência, que vem aumentando. Nesse caso, o que algumas empresas chamam de crise, outras chamam de oportunidade. Faz parte do jogo.
O cenário, contudo, não é isento de preocupações. Os problemas se manifestam sobretudo no mercado de planos de saúde, por onde circulam o financiamento e os pagamentos, mas suas raízes se espalham. Em especial, são diferentes os incentivos de prestadores (hospitais, laboratórios, profissionais de saúde – os que realizam os serviços e ganham com produção mais alta) e dos planos (que realizam os pagamentos aos prestadores e ganham com produção mais baixa), causando ineficiência e gastos desnecessários.
Um estudo recente do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), em parceria com a Associação Umane, mostra que o número de máquinas de ressonância magnética por beneficiários no Brasil é quase o dobro da média dos países da OCDE, e continua aumentando. Isso indica que prestadores têm incentivos para expandir a capacidade instalada e gerar produção em demasia, cuja conta é paga pelos planos ou, em última instância, por quem os paga. Não surpreende que os custos com a gestão dos serviços privados no Brasil sejam quase o dobro da média da OCDE. Em suma, gasta-se mais do que necessário no setor privado, e os incentivos continuam a induzir gastos crescentes.
E quais têm sido as respostas para isso? Já mencionamos a verticalização, mas essa solução também tem problemas. Há conflito de interesses quando a empresa que oferece o serviço é a mesma que incorre no custo de ofertá-lo. A qualidade pode ser afetada, e não temos capacidade regulatória para monitorá-la.
Por outro lado, existe mobilização por mais desregulamentação no setor de planos, por exemplo, via regras de reajustes mais favoráveis aos planos ou permissão de coberturas mais limitadas. Isso pode fragmentar ainda mais o mutualismo e permitir o afastamento do mercado daquelas carteiras e beneficiários de maior risco para os planos, na contramão do que precisamos no país: planos que protejam contra sinistros caros e imprevisíveis, que sejam financiados de modo compartilhado em carteiras grandes o suficiente para serem viáveis no longo prazo. Afinal, não faz sentido pagar a vida inteira por um plano que não estará disponível para o beneficiário justamente quando for necessário.
Nesse sentido, enquanto a verticalização é uma solução com problemas, a desregulamentação parece trazer problemas de difícil solução. Afinal, é o mutualismo que nos permite pagar a conta da saúde, muitas vezes imprevisível e cara demais para que as pessoas a consigam pagar sozinhas. No limite, a desregulamentação pode quebrar a espinha dorsal do financiamento privado. As propostas que constam em audiência pública anunciada recentemente pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) reforçam essa direção e as preocupações.
Em síntese, temos no setor privado gastos crescentes, em grande medida motivados por conflito entre seus atores, e respostas que podem até mesmo reforçar o problema. Em paralelo, a cobertura de procedimentos e o processo de incorporação de novas tecnologias cada vez mais caras não são disciplinados por evidências científicas e análises de custo-efetividade, como em outros países. Já é difícil fechar a conta e oferecer seguros com ampla cobertura mesmo em países de renda alta e que regulam de perto quais tecnologias e procedimentos são cobertos.
No Brasil muitas vezes esse processo é ainda judicializado. Também em paralelo, a população brasileira continuará a envelhecer, e os aposentados antes cobertos por planos empresariais buscarão por novos planos no mercado. Não há garantia de que conseguirão encontrá-los a preço viável.
As necessidades de financiamento da saúde aumentarão continuamente. Como a sociedade brasileira pagará essa conta? Mesmo com sucesso em reduzir desigualdades e ineficiências, o SUS apresenta sinais de subfinanciamento inequívocos. O gasto público no Brasil é alto para um país de renda média, falta prioridade. Dificuldades em redirecionar gastos para ampliar o financiamento do SUS limitam a sustentação daquele que é constitucionalmente estabelecido como o mecanismo de seguro para toda a população brasileira. O setor privado não está direcionado à ampliação da oferta de serviços de seguro propriamente ditos.
A fragmentação do mutualismo em carteiras cada vez menores não será solução. Pelo lado da governança, tampouco temos no Brasil capacidade regulatória para reduzir falhas de mercado e disciplinar as relações público-privadas de modo a induzir escala, eficiência e equidade no sistema como um todo.
Precisamos de mecanismos sólidos de financiamento da saúde. Se não caminharmos nesse sentido, os problemas continuarão a emergir no mercado de planos, e suas raízes continuarão a se aprofundar por todos os lados.
Rudi Rocha é diretor de pesquisa do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e professor da FGV EAESP.
Arminio Fraga, Miguel Lago e Paulo Chapchap são, respectivamente, economista e fundador, diretor executivo e diretor médico do IEPS.
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