Reformaria o Estado se tivesse o “papelzinho azul” em 2024


Em alusão ao 30º aniversário da criação do real, Edmar Bacha, Pedro Malan e Gustavo Franco reuniram crônicas publicadas por eles desde o processo de implementação do Plano Real no livro “30 anos do real”, lançado em junho. A obra também traz reflexões sobre os tempos atuais.

“Precisamos ainda de um conjunto de reformas que infelizmente o atual governo não está implementando. A reforma tributária poderia ser um novo Plano Real, mas o Lula não se empenhou nela”, disse Edmar ao Poder360.

Eis trechos da entrevista:

Poder360: Quais os bastidores por trás da história do papelzinho azul?

Edmar Bacha: Em 13 de agosto, Itamar [Franco] demite [Paulo César] Ximenes, presidente do Banco Central. Como já tinha demitido 3 ministros da Fazenda antes do Fernando Henrique, achei que a gente estava arrumando as coisas para ir embora. Naquele dia, o Fernando Henrique convocou uma reunião com a equipe mais sênior na casa dele. Eu cheguei mais cedo e já estava pensando há muito tempo como seria o plano [Real]. Era uma coisa que a gente já vinha elaborando desde a PUC.
Eu estava na sala de espera. Tinha uns papeizinhos azuis. Eu rabisquei como seriam as 3 etapas do plano. Era basicamente fazer um ajuste fiscal e patrimonial na frente. Depois a gente faria a unificação da indexação, usando a UFIR (Unidade Fiscal de Referência), na qual os impostos seriam reajustados todos os dias de acordo com a cotação do dia anterior, depois nós íamos criar a moeda ancorada no dólar.
Lá pelas tantas na reunião o Fernando Henrique estava muito triste. O Winston Fritsc disse que iríamos fazer um reajuste nos preços. Eu falei para o Winston que não seria nada disso. Como estávamos indo embora, não íamos fazer nada. […] Eu falei: ministro, se a gente não fosse embora, a gente ia fazer um plano mais radical. Quando o senhor for eleito presidente, a gente vai fazer o seguinte: primeiro, vamos fazer um baita ajuste fiscal, garantir que o governo não precise da inflação para equilibrar suas contas. Em seguida, vamos lidar com a inflação inercial que vem dos reajustes de preços e salários em função da inflação passada. Vamos unificar todos os índices, criar um índice baseado na UFIR. Quando tiver tudo URVerizado, vamos transformar a UFIR em uma moeda ancorada no dólar.
Ele [Fernando Henrique] ficou felicíssimo. A ideia já estava circulando há muito tempo, o que ele não sabia. Já estava tudo esquematizado, pelo menos na minha cabeça. 

O episódio foi em agosto, mas o Plano Real foi implementado só no ano seguinte, em 1994.
O Fernando Henrique pediu para a gente explicar o plano para o Itamar [Franco] em termos gerais. O Itamar queria ser mantido a par do que estava ocorrendo. Nós fomos ao Palácio do Planalto. Eu disse a ele que o Brasil era uma Belíndia [expressão para se referir a conjunção a cobrança de impostos da Bélgica e a pobreza da Índia] que tem duas moedas: uma que derrete no bolso do povo todo dia e outra que se valoriza nas contas remuneradas dos ricos.
Nós vamos fazer uma moeda só para o pobre e para o rico. Estável. Mas vai precisar de tempo porque vamos precisar fazer uma série de mudanças no Orçamento e vai demorar um certo tempo até ser feito.
Eu pedi um autógrafo para os meus filhos, que diz o seguinte: para Júlia e Carlos Eduardo, um abraço amigo e o meu desejo que peço “muita velocidade” ao querido pai em benefício do nosso Brasil. Ele [Itamar Franco] pediu muita velocidade e esperou 9 meses. 

Como foi possível ter duas moedas: Unidade Real de Valor e cruzeiro real?

A razão pela qual a URV entrou no sistema monetário foi puramente jurídica. Do ponto de vista econômico, tudo o que a gente estava fazendo, era um índice que unificava todos os índices em relação aos quais os salários, os preços eram reajustados em relação à inflação passada. Estávamos unificando o sistema de indexação. Era um índice. Não precisava ser moeda, do ponto de vista econômico, mas do ponto de vista jurídica precisava por duas razões.
Nós íamos converter em URV os salários pela média dos 4 meses anteriores. Os salários que estavam no pico iam ser rebaixados e os salários que estavam lá embaixo iriam subir. A Constituição proíbe reduzir salários. Em uma moeda, é possível redefinir valores. Para fazer a conversão do salário pela média, a gente precisava que a URV pertencesse ao sistema monetário.
A outra razão é de que nós não queríamos que os especuladores de dívida pública ganhassem milhões pelo fato de que a correção monetária da dívida pública com base em uma inflação de 2 meses atrás. Mesmo que a gente acabasse com a inflação, a dívida pública continuaria a crescer durante julho e agosto de acordo com a inflação de maio e junho. Precisávamos URVerizar a correção monetária. Para URVerizar a correção monetária e fazer o pagamento da dívida, do cruzeiro real para o real, a diferença da inflação da URV para o real, também precisávamos que a URV fosse parte do sistema monetário.
Tivemos toda a precaução jurídica, consultamos os melhores advogados do país. […] Tudo foi constitucional. É tanto que a conversão dos salários pela média não foi contestada. Obviamente foi difícil passar politicamente, tanto no Palácio do Planalto quanto no Congresso. Isso era uma questão política.
A URVerização monetária para efeito de pagamento da dívida pública, isso foi para o Supremo. 10 anos depois o Supremo decidiu a favor da constitucionalidade do que fizemos. Não houve nenhuma outra contestação do que fizemos. Foi tudo bem-feito do ponto de vista jurídico. 

Por que o Plano Real deu certo? Qual foi o diferencial dele em relação aos outros planos?
O que teve de igual com o real, em relação aos outros planos? Nada. O que era diferente? Tudo. Os outros planos eram de congelamento. Tudo era feito por medida provisória que o Congresso tinha que engolir. No caso do [Fernando] Collor, com confisco.
[…]
Os planos eram malucos. Esse 
[Real] não. O Fernando Henrique anunciou cada etapa. Tudo que a gente for fazer, nós vamos avisar antes. Vamos anunciar o plano pouco a pouco. Nunca tinha sido feito dessa forma. Era um plano que as pessoas foram assimilando pouco a pouco o seu conteúdo. Havia um amplo debate dentro do Congresso e do governo. 

O Plano Real foi muito bem-sucedido. Por que não conseguimos replicar esse plano em outras economias, como na Argentina, que vive um contexto inflacionário em um nível tão elevado quanto o do Brasil na década de 1990?
Porque a Argentina dolarizou. Nós não dolarizamos. Inventamos a correção monetária. Pela correção monetária, não é só a dívida. Os impostos são corrigidos de acordo com a inflação. Os salários e aluguéis eram corrigidos de acordo com a inflação passada. Tínhamos um sistema de indexação que era perfeito. […] Nenhum outro país fez esse formato de indexação. 

Durante a implementação do Plano Real, o Fernando Henrique pediu desincompatibilizaçãodo cargo para concorrer às eleições no final do ano e no lugar dele assumiu o Rubens Ricupero. Como foi o processo de ter um novo ministro da Fazenda para coordenar um plano que já estava em andamento?
Foi ótimo. O Ricupero é um diplomata extraordinário. Ele trouxe 2 ou 3 assessores. A gente já se dava bem desde antes. Ele não interveio no processo. Só queria entender para poder explicar. Ele era ótimo explicador. Contribuiu enormemente para que a população compreendesse o que estava sendo feito. 

Como conseguiram atender às demandas de todos os setores?
Primeiro, teve o problema de convencimento do Palácio do Planalto. A entourage [grupo de indivíduos que forma a roda habitual de alguém] do Itamar queria converter todos os salários pelo pico, como foi feito no Plano Cruzado e deu com os burros n’água. Depois, quando a gente introduziu o real, entourage do Itamar queria congelar. Falamos que não, que iríamos fazer a introdução do real a frio. Tudo isso fez com que o Fernando Henrique e o Ricupero ameaçassem se demitir diversas vezes para convencer o Itamar.
A outra questão eram os problemas. Como os setores iriam se ajustar em URV. Como nós convertemos forçosamente na MP os salários, os aluguéis, as mensalidades escolares. Tinham regras. O resto a gente deixou para ser negociado entre os diversos setores econômicos.
[…]
Montamos uma banca de negociação no Ministério da Fazenda, com Milton Dallari, para ajudar a conciliar esses interesses ao longo da cadeia de produção. Muitos setores se entendiam entre si. Outros precisavam sentar conosco para discutir as regras que não eram impostas por nós. Éramos árbitros nesse processo. Fizemos isso por 4 meses. 

O plano real contribuiu para eleição e reeleição de FHC?
Não tenho nem dúvidas. Em junho de 1994, Lula estava com 40% e Fernando Henrique estava com 20%. Em agosto de 1994, Fernando estava com 40% e Lula, com 20%. Mudou a perspectiva eleitoral da água para o vinho. Na hora que o real entrou, acabou Lula. Íamos para o comício do Fernando com o real na mão. 

O livro “30 anos do real” foi lançado em junho. O que os leitores vão encontrar na obra?
O livro reúne as crônicas que foram publicadas por nós ao longo do processo. Não é sobre nós hoje refletindo sobre os 30 anos, exceto na última parte. A cada aniversário do real nós publicamos artigos que foram coletados. Primeiros 5 anos, primeiros 10 anos. São ensaios, como diz o subtítulo, ao calor do momento.
Nós estamos comentando a evolução da economia brasileira do ponto de vista do real. O grosso do livro não se refere ao período do Fernando Henrique, só aos primeiros 5 anos. Depois é Lula, Dilma, Temer, Bolsonaro, Lula de novo. Não é um livro sobre a confecção do real, mas como evoluiu a economia brasileira do ângulo do real nesses últimos 30 anos.  

Sobre o último capítulo do livro 30 anos do Plano Real, quais as principais reflexões?
O meu texto sobre os 30 anos se chama “Em busca de um país real”. Eu reflito sobre os males brasileiros, má distribuição de renda, governo balofo que leva ⅓ para casa de tudo o que é produzido e não entrega serviços públicos, economia fechada, com uma indústria voltada para o próprio umbigo que explora os consumidores com preços surreais. Distribuição de renda que continua muito ruim. Me refiro também às queimadas do Amazonas, à matança dos povos indígenas no governo Bolsonaro.
[…]
Precisamos ainda de um conjunto de reformas que infelizmente o atual governo não está implementando. A reforma tributária poderia ser um novo Plano Real, mas o Lula não se empenhou nela. Entregou a reforma tributária para assessores do Ministério da Fazenda negociarem com o Congresso e o Congresso encheu o programa de jabutis. Com isso, perdeu muita eficácia dessa reforma que poderia ser maravilhosa. Vai ser boa porque o nosso sistema tributário é horrível, mas não vai ser nem de perto tão boa quanto poderia ter sido caso Lula tivesse minimamente se empenhado nela em vez de ficar xingando o Banco Central. 

Como as críticas de Lula a Campos Neto impacta a economia? Qual o principal efeito econômico?
O impacto é terrível porque quando o mercado financeiro vê o Lula xingando todo o dia o Banco Central, o que o mercado acha? Esse cara [Lula] não vai fazer o que é preciso para equilibrar as contas do governo. O Banco Central vai ter que ser ainda mais duro na política monetária para poder segurar a inflação porque não vai ter nenhuma ajuda. Esse governo quer gastar, gastar, gastar. Se não conseguir arrecadar mais, que também é ruim do ponto de vista da alocação eficiente de recursos…
Não chama de gasto, mas de investimento. Mas para fazer investimentos precisa de “tintin” também. Cria um clima de que não vai dar certo. O dólar vai subir. A taxa de juros longa de 3 a 4 anos abre uma boca de jacaré. É a taxa que importa para as empresas. O Lula ao invés de fazer o que tem que fazer, que é equilibrar as contas públicas gastando menos, fica atacando o Banco Central só vai estar piorando a situação para ele mesmo. Um tiro no próprio pé. Ele não vai ser reeleito. 

Se neste momento o senhor tivesse um papelzinho azul na sua frente e pudesse oferecer um plano para o Brasil. Quais seriam os pontos que esse papel teria hoje em dia?
Acho que teriam 3 coisas. Reformar o sistema de transferências sociais nas linhas da Lei de Responsabilidade Social que o Tasso Jereissati apresentou. Fazer uma reforma do Estado […] e abrir a economia. Nenhum país do mundo conseguiu crescer com a distribuição de renda que a gente tem, com um Estado ineficiente que a gente tem e tão fechado para a economia mundial como somos. Precisamos inverter esses 3 vetores. Precisamos melhorar a distribuição de renda, tornar o Estado minimamente eficiente e abrir para o mundo.