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Terminei em dezembro de 1963 a graduação em economia na Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG. No primeiro semestre de 1964, frequentei o Curso de Aperfeiçoamento de Economistas (CAE), antecessor da atual Escola de Pós-Graduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. Naquela época, não havia cursos de pós-graduação strictu sensu em economia no Brasil. O curso do CAE destinava-se a preparar recém-graduados em economia para fazer a pós-graduação nos EUA. No final de agosto de 1964, embarquei para os EUA para fazer o mestrado (e posteriormente o doutorado) na Universidade de Yale.
Ao longo de meu primeiro ano em New Haven, escrevi assiduamente a minha mãe que morava em Belo Horizonte. Seguem-se excertos dessas cartas em que descrevo minha experiência no programa de mestrado em economia de Yale. Fiz mínimas correções gramaticais ou de estilo e adicionei observações entre colchetes que ajudam a entender o contexto.
Em textos paralelos, também extraídos dessas cartas, coleto minhas impressões “Tocquevilleanas” sobre os EUA no primeiro ano em que lá vivi, e relato minha vivência com Celso Furtado que passou esse ano como Visiting Fellow em Yale.1
Um mundo à frente
19/06/1964 (do Rio de Janeiro): Ontem, chegou de Virgínia, EUA, onde leciona, o Professor Alexandre Kafka, chefe do Departamento de Pesquisas do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação. E me chamou para conversar, quando me desaconselhou firmemente de ir para Yale. Explicou-me que o curso que Yale permite a estrangeiros é exclusivamente para esses, numa espécie de apartheid (ou análogo aos cursos que na França se oferecem aos nigerianos, como ele disse), e sem oportunidade de prosseguir no programa para o doutorado. Isso é verdade. Dos sete ex-alunos do CAE que foram para Yale, apesar de serem todos bons apenas um conseguiu passar para o curso do Ph.D. [Era o João Paulo dos Reis Velloso].
Disse mais, que se eu tenho uma oportunidade de aperfeiçoamento e disponho de múltiplas escolhas, por que vou pegar justamente aquela que mais me restringe as possibilidades de ampliar meus conhecimentos e melhorar meu gabarito como economista? Que meu temor quanto a emprego bem-remunerado no futuro era inteiramente infundado. Se eu quisesse largar o curso hoje, ele imediatamente me colocaria na SUMOC ou no Ministério do Planejamento. Que hoje faltam bons economistas no Brasil por todos os lados. Que o título de Master (que eu obteria em Yale), hoje, nos EUA, é dado apenas àqueles incapazes de seguir o curso de doutorado, um prêmio de consolação à incapacidade (ou aos latino-americanos). Que as oportunidades que se abririam com o Ph.D. seriam infinitamente maiores nos próprios EUA. Que para fazer um curso de um ano nos EUA era pouco mais do que uma viagem de turismo: não iria aprender muito mais do que estou aprendendo aqui no CAE.
Eu acabei concordando em princípio com ele. Então, o Professor Kafka mandou chamar o Ney [Coe de Oliveira, administrador do CAE] e disse para ele enviar meu pedido de inscrição para a Universidade de Berkeley, Califórnia, que está também no primeiro time das escolas americanas. E parece que ainda há tempo de eles me aceitarem.
[Não me recordo de resposta de Berkeley, mas devo ter perdido o prazo. Também considerei Harvard e MIT, mas os programas de doutorado dessas universidades estavam fechados para brasileiros, devido ao fraco desempenho de ex-alunos do CAE em anos anteriores.]
De qualquer modo, Yale está garantida. Se a coisa não der certo em Berkeley, vou para lá. Terminado o curso de Master, vamos ver se consigo um dos primeiros lugares para prosseguir no doutorado. Se não, há a possibilidade de conseguir inscrição em outra escola americana. Se não estiver gostando, ou arrumo um emprego por lá ou venho de volta.
Se puder ir para Berkeley, que tem também a vantagem de um ambiente semilatino, e conseguir de saída inscrição para o Doutorado, também está bom. Se a coisa não estiver dando certo, passo para o curso de Master e deixo o barco correr.
É, parece que a coisa não é tão dramática quanto pensava. Mas só quero ver o que [Mario Henrique] Simonsen vai achar disso tudo. E o Werner [Baer, professor de Yale que estava na Fundação fazendo pesquisas para seu livro sobre o Brasil, e que me havia indicado para aquela universidade] que deve chegar aqui por esses dias.
[Werner deve ter-me convencido que passar do mestrado para o doutorado em Yale não seria tão difícil assim; bem como que fazer o mestrado facilitaria minha adaptação à vida e ao ritmo de estudos nos EUA, já que diversos ex-alunos do CAE que saíram direto para o doutorado não foram bem sucedidos.]
Mas, de qualquer modo, Kafka não estava blefando: me pareceu sinceramente interessado em ajudar-me e julgando o curso de Yale inadequado para mim. Não naturalmente o doutorado, mas a ínfima “probabilidade estatística” [segundo ele] de conseguir ingresso, competindo com pessoal mais experiente, treinado em inglês, com cursos diversos de pós-graduação — os handicaps são realmente grandes.
Do modo que vejo as coisas agora, as opções que se apresentam são: (1) continuo aperfeiçoando o progresso em minha profissão nos meios intelectual e econômico, dependente de estudos bastante mais profundos do que disponho hoje, exigindo quase certamente o curso de doutorado; nesse caso, corro o risco de, na volta, sentir-me frustrado com as oportunidades de que disporia no Brasil, como parecem estar dois conhecidos meus [não me lembro de a quem me referia, mesmo porque quase não havia Ph.D.’s brasileiros em economia naquela época2], amargurados com a mediocridade reinante; (2) obtenção de cultura econômica acima da média dos economistas brasileiros, o que me facilitaria acesso a posições destacadas, mas talvez não me sentindo do verdadeiro “primeiro time”; essa parcial frustração intelectual poderia em muito ser compensada se tivesse em alto grau de prioridade o apego à vida doméstica, a posições estáveis (emprego público com estabilidade) embora nem tanto satisfatórias, bate-papos com amigos etc.; para tal, o Master seria suficiente; (3) ou então a conquista de posições sociais, através do charme pessoal e da inteligência, com um trem de vida algo perdulário em matéria de gastar dinheiro e algo mercenário na questão de ganhar dinheiro. Nesse caso, a ida para os EUA seria apenas para revestimento externo, para facilitar a conquista de determinadas áreas, refratárias à indústria nacional…
E entre essas três posições, Dona Maria, meu coração balança conforme o momento: é (2) se estou em casa reunido aos manos; é (3) se estou numa boate com uma turma alegre; e é (1) se estou numa discussão altamente intelectualizada em matéria de economia.
Enfim, ainda há tempo para resolver tudo isso. Quem dera que todos dramas do mundo fossem do tipo do meu!
Adaptando-me ao mestrado
[Decidida minha ida para Yale, viajei para os EUA no final de agosto. Tinha uma bolsa de estudos da Fundação Rockefeller até janeiro de 1965 e da USAID daí em diante. Instalei-me em New Haven em apartamento dividido com Dave Barkin, aluno americano do doutorado, e Clóvis Cavalcanti, meu colega no CAE que também chegou para o mestrado. As aulas começavam em 21 de setembro].
10/09/1964: Vamos a meu programa. Em princípio, vou tentar o Master em um ano, mas posso daqui a uns três meses estender o programa para ano e meio. Tenho que tomar quatro cursos de um ano ou oito de um semestre, ou uma mistura. Sou obrigado a fazer um ano de Análise Econômica e um semestre de Estatística. Já escolhi um terceiro curso: Desenvolvimento Econômico, de um ano, lecionado por dois famosos professores, [Gus] Ranis e [Lloyd] Reynolds. Como ouvinte, vou tomar um ano de Matemática. Quero tomar um outro curso de um semestre, de economia da empresa; e provavelmente um ano de Moeda e Bancos. O problema é que há uma incompatibilidade de horários, com uma cadeira a mais no segundo semestre e uma a menos no primeiro. O Baer chegando, ele é conselheiro dos estudantes estrangeiros, vou tomar uma decisão. Quanto ao curso de que [Celso] Furtado participa [Introduction to Latin American Studies], só vou ter tempo de sapear.
18/09/1964: Esta semana prestei uma prova de inglês, em que não me saí mal, mas não sei se suficientemente bem para não precisar de algumas aulas suplementares. Realmente, talvez algumas aulas de redação não fosse má coisa, pois tenho receio de que as provas de Economia que vá fazer deixem a desejar mais pelo inglês do que por outra coisa, mas o problema é que já estou com 19 horas de aula por semana e acho que não vai sobrar é tempo.
Acabei de ler o Economic Report of the President3, de que gostei muito. Acho que foi a primeira vez que vi praticamente todos ensinamentos de economia teórica aplicados (magistralmente) à política econômica. É algo sensacional ver como é que a coisa funciona mesmo, quando quem faz os estudos e expõe os resultados entende de economia. Também, trabalhar com a quantidade de dados empíricos de que os economistas americanos dispõem é uma beleza. Nada como ser superdesenvolvido para se ter boas estatísticas!
Desisti do resto das leituras que pretendia iniciar em benefício de um longo estudo sobre o sistema monetário norte-americano, o chamado Sistema Federal da Reserva, que julgo ser necessário para a cadeira de Moeda e Bancos que vou tomar.
22-23/09/1964: O curso parece que vai ser mesmo pesado. A turma, em geral, parece bem preparada. Em todo caso, é cedo para dizer qualquer coisa de concreto. O certo é que tem gente de todo lado. Hoje, na aula de Contabilidade Nacional, pude anotar: EUA, Salvador, França, Índia, Barbados, Trinidad, México, Sudão, Japão, Porto Rico, Noruega, Egito, Nicarágua, Guatemala e Gana.
26-27/09/1964: Ao fim dessa primeira semana de aulas, restando ainda uma dúvida sobre um dos cursos que vou seguir, é temerário fazer qualquer julgamento mesmo em caráter preliminar. Decidi-me a tomar somente cursos para o Master, quando, numa mesma cadeira, poderia escolher entre as seções de Master ou de Doutorado, a primeira geralmente frequentada por estrangeiros, e a segunda, por americanos, embora haja diversas exceções. As razões são bastante explicativas da escolha: em primeiro lugar, as seções para o Master, embora comecem de um nível mais baixo, exatamente para acostumar o estudante estrangeiro ao ritmo de estudos norte-americano, com suas cavalares listas de leitura, progridem rapidamente e o propósito é que terminem no mesmo nível das do Doutorado; por conseguinte, se torna mais fácil a obtenção de boas notas, o que é fundamental seja para eventual posterior inscrição no curso de Doutorado, tanto em Yale como em outra universidade, seja para o ambiente com que serei recebido nos meios ligados à Fundação Getúlio Vargas, o que, tendo em vista a atual situação política, significa o ambiente com que serei recebido no Brasil.
Quanto aos cursos, até agora estou certo dos seguintes. Como ouvinte, atenderei ao curso de Matemática e ao Seminário sobre Problemas da América Latina. Para crédito, isto é, valendo nota, seguirei Análise Econômica, Contabilidade Nacional e Desenvolvimento Econômico. Para decidir, ainda tem Moeda e Bancos ou Comércio Internacional, já que tenho que tomar quatro cursos para crédito.
Se o professor de Moeda e Bancos fosse bom, não teria dúvida em escolhê-lo. Mas ouvi dizer que não é, embora seja muito famoso nos meios acadêmicos [Henry C. Wallich]. Também, me parece que o curso é muito voltado para os EUA, enquanto que no de Comércio Internacional [lecionado por Gerry Helleiner e (?) Mead] a tônica é principalmente sobre países “em vias de desenvolvimento” (apelido que os economistas da ONU arrumaram para subdesenvolvimento).
O problema é que gostaria de fazer a escolha de um ponto de vista prático, de meu interesse profissional futuro. Mas é impossível decidir-me quanto a isto agora. O curso de Comércio Internacional me facilitaria muito se, bem-sucedido, gostasse de trabalhar em organismos internacionais, como o Fundo Monetário Internacional, as Nações Unidas ou o Banco Mundial. Mas no caso de voltar ao Brasil, para trabalhar na SUMOC, em algum banco particular (o Sérgio [Gregori, meu primo, que tinha relações com o Citibank no Brasil] já me deu uma “sondada”), ou no BNDE, o curso de Moeda e Bancos é obviamente melhor. E essas todas (e mais algumas com a projetada Escola de Pós-Graduação em que estão querendo transformar o CAE, além de mais umas duas ou três em Belo Horizonte) são oportunidades já abertas (quão abertas, naturalmente, dependendo do meu desempenho aqui), entre as quais a escolha é obviamente difícil, de um ponto de vista objetivo puramente racional.
Segunda-feira, em todo caso, vou me decidir. De manhã, tenho a primeira aula de Moeda e Bancos, e a seguir vou me entrevistar com Mr. Triffin, que vai lecionar o segundo semestre dessa cadeira, e que acontece de ser possivelmente a maior autoridade mundial em problemas monetários internacionais. Assim, vou tomar conhecimento real da estrutura do curso e me decidir de vez. Naturalmente, se ficar aqui para o doutorado esse problema deixa de existir e, entre um e outro, escolho os dois, mas isso só vou saber lá para o meio do ano que vem.
29-30/09/1964: Hoje à tarde fiz uma prova de francês, tradução de trecho para o inglês, em que acho que me saí satisfatoriamente: a dificuldade maior foi, não com o francês, mas com a colocação adequada das frases em inglês. Quanto ao exame de inglês, acho que deve ter dado pra passar, porque não me chamaram para um teste adicional. É claro, isso também pode significar que entrei pelo cano, mas bem que tenho cá minhas dúvidas.
Estava planejando umas fugidas do estudo no fim de semana mas depois da quantidade de leitura hoje prefixada para a aula da semana que vem numa das cadeiras – exatamente 500 páginas! – acho que mal vai dar tempo para um cineminha.
Ah, acabei escolhendo Comércio Internacional, não por causa dos empregos nas organizações internacionais, mas porque se cumpriram todos meus temores quanto à cadeira de Moeda e Bancos: o professor não é bom, o curso tem seis meses de instituições monetárias norte-americanas e, além disso, o Prof. Triffin me disse que talvez não vá lecionar no segundo semestre.
06/10/1964: O resto são aulas e mais montanhas de livros que tenho devorado um após outro, mas parece que a coisa é na base de quanto mais se lê mais se tem a ler. Bom pra mim é que todo mundo está achando a mesma coisa, mas desse jeito não sei o que os professores querem que guardemos para responder nas provas. Em todo caso, também por causa do inglês (estou entre os 20% piores; a maioria do pessoal já falava inglês em seus países de origem), já sei que os primeiros resultados não vão lá ser dos mais animadores. Enfim, nos últimos não vou ter mais essa desculpa.
09-10/10/1964: Me passaram na prova de francês e, ao que tudo indica, também no exame de inglês, de modo que não vai ser por conta de línguas que vou deixar de tirar o Master; também, era o que faltava.
Pra variar, essa semana estudei pra burro. Até desmarquei um encontro pra poder me preparar para a aula de hoje de manhã. Mas valeu a pena, porque deixei o mineirismo de lado e mandei brasa na discussão, com o inglês que fosse. O resultado foi que no fim só tínhamos eu e o professor falando. Se conseguir continuar desenvolvendo a leitura como o venho fazendo – já vi que minha rapidez de leitura com um mínimo de apreensão é algo superior à média da turma (embora isso possa ser só impressão, por não estarem os outros informados da importância da participação nas aulas aqui) – me parece que, quanto a aulas (as provas são outra história), somente terei dificuldade numa matéria, a tal de Contabilidade Nacional, que exige maior treino para boa apreensão.
13-14/10/1964: Hoje, depois da aula das 16 às 18h na casa do professor Ruggles – aula que é gozadíssima, pois é na sala de visitas, com o professor confortavelmente instalado numa poltrona recurvada de couro e nós espalhados em volta, tomando muito compenetrados uma xícara de café (com “creme”) – fui ver a palestra do Milton Friedman sobre “A política econômica de Goldwater”, que queria ver como alguém podia pôr isso em termos racionais. Esse Friedman é o principal assessor econômico do Goldwater [candidato do Partido Republicando à Presidência] e, como não podia deixar de ser, ultraconservador. Mas de qualquer modo é um hábil e inteligente economista, fazendo lembrar o Eugenio Gudin. Pelo menos me convenci de que se a candidatura do Goldwater tem sua rationale, ela é decididamente século XIX.
Hoje também recebi uma carta da Da. Maria Carmen, professora de Comércio Internacional na Faculdade, por um material didático que lhe enviara. Ela está bastante contente por eu me ter decidido pela matéria que ela me ensinou. Mas decididamente Ph.D. só se eles me deixarem escrever a tese no Brasil, que isso aqui é muito bom, mas meu negócio é na base do subdesenvolvido meia-a-meia, que de tempo integral é americano quem precisa…
Entrando na rotina
16-17/10/1964: A vida aqui é assim: todos dias úteis, levanto-me entre 7h30 e 8h e vou à aula às 9h. As aulas são em lugares diferentes, na Cowles Foundation, no Economic Growth Center, na residência de Mr. Ruggles, mas sempre num mesmo bloco, a 15 minutos de casa, do outro lado do “campus”. As aulas vão de 9h às 10h30 ou às 11h, dependendo de se a matéria tem duas (Matemática e Análise Econômica) ou uma aula por semana (o resto). Logo depois, em geral, vou ao Economic Growth Center, onde Werner [Baer] e Celso [Furtado] têm escritórios, para dar uma lida rápida no Jornal do Brasil e no New York Times, e para ler algum artigo pequeno na biblioteca. Em geral, todos livros e artigos de que precisamos estão “sob reserva”, tanto aí quanto na Cowles, como também na biblioteca central (esta tem 4 milhões de livros em suas prateleiras!), isso significando que esse material só pode ser retirado depois de fechadas as bibliotecas (às 16h, 16h30 e 21h, respectivamente) — na verdade, as bibliotecas continuam abertas, esses são os horários “comerciais” –, sendo obrigatória sua devolução antes das 9h30 do dia seguinte. Entre 12h e 13h30 almoço em casa. Antes das 14h em geral já estou de volta ao Centro ou à Cowles, dependendo do tipo de leitura; fico lá até às 16 ou 17h.
Duas vezes por semana, tenho aula de 16h às 18h, mas já vou diminuir para só uma vez, já que o Seminário sobre a América Latina está apenas interessante, sendo divertido comparar os diferentes pontos de vista dos diversos especialistas, mas está em nível de “generalidades” e não me posso dar ao luxo dessas “tertúlias intelectuais”, pelo menos nesse primeiro semestre. Uma vez, tenho aula de 13h45 às 15h45.
Depois disso, venho para casa, dou uma estudada rápida, escrevo umas cartas e, depois do jantar, mais estudo em cima, até 23h ou 24h. O que facilita ficar estudando em casa às noites e nos sábados e domingos (quando a maior parte do pessoal está na biblioteca central, que sábado se fecha às 17h e no domingo, como nos demais dias de semana, às 24h) é que Dave tem boa parte dos livros de que precisamos, e eu e Clóvis damos sempre um jeito de trazer para casa os exemplares da Cowles e do Centro, que são só um ou dois que nos interessam.
Agora, sábado de manhã é para compras, à tarde para estudar e à noite, bem, à noite é para “noitar”. Domingo, pra variar, com exceção da missa, também é para estudar o dia todo. Vou ver se mais pra frente dá pra tirar folga também em parte do domingo, que tem muita coisa aqui para se ver que estou perdendo, pra não falar em cinema que do jeito que a coisa vai acho que nunca mais vou ver (Puxa, vai ser exagerado, trem! Na verdade, sempre dá pra umas prevaricadas paralelas).
E esse povo aqui não é mole não. Tem uma tal de férias de Natal, duas semanas, mas logo em seguida tem as provas de meio-termo. Já vi que mal vou ter uma semana de folga desse jeito.
21/10/1964: Aqui não tem propriamente uma época de provas, porque cada professor estabelece os requisitos dos cursos a sua vontade. E agora estou vendo que nem bem sei o que cada professor vai pedir. Matemática, como é sem crédito, não tem provas, mas toda semana tem exercícios para casa, que não têm sido nada fáceis e são obrigatórios. Comércio Internacional: tenho que entregar um paper agora (pequeno) e outro em dezembro; parece que tem uma prova na semana que vem e outra depois do Natal. Desenvolvimento acho que é só uma prova no fim do curso (janeiro), digo, no fim da parte de teoria. Análise Econômica tem duas provas até janeiro e Contabilidade Nacional tem um paper e acho que uma prova. Mas a nota final depende também de participação nas aulas, numas cadeiras mais do que em outras.
04/11/1964: Hoje o tempo se abriu com o sol radiante saudando a vitória do Johnson [na eleição para a Presidência]. Também não tem aula porque o professor [possivelmente, Lloyd Reynolds] deve ter reunido os membros do departamento de economia em seu apartamento ontem, para acompanhar os resultados pela televisão e bebemorá-los devidamente. Aqui em New Haven, de cada 4 votos 3 foram democratas e, em Connecticut, os democratas venceram em toda linha, na senatoria e nas seis cadeiras para o Congresso. De modo que hoje está um dia ideal pra me preparar para o primeiro teste, amanhã, de Comércio Internacional – e que esperança de fazer a revisão da matéria toda; o que foi apreendido na primeira leitura fica por isso mesmo, que nesse resto de tempo vou completar as leituras que ainda não tive tempo de fazer. Amanhã, para a mesma cadeira, também entrego meu primeiro paper, que tem um título pomposo, The changing pattern of Brazilian imports: a suggested approach, mas é puro “jornalismo”. Só espero que seja isso o que o professor queria.
07/11/1964: Na quinta-feira, fiz a prova de Comércio Internacional e no duro que não gostei, não só por não ter desenvolvido tudo o que sabia, como por não ter estudado uma parte do material, do modo por que devia ter antecipado o professor o requereria. Não é que não tenha feito boa prova, se continuar no mesmo padrão dá pra tirar o Master folgado; o problema é sempre dessa minha cultivada vaidade intelectual de fazer as coisas melhor do que os outros. Acho que preciso mudar o método de estudo, porque as provas com o [Mario Henrique] Simonsen, lá na Fundação [Getúlio Vargas], exigiam era puro raciocínio e capacidade lógica, não tomando tanto tempo e sendo permitida a consulta a qualquer material. Aqui, as provas têm um caráter mais descritivo, testam a capacidade de a gente sintetizar em tempo mínimo determinada matéria, geralmente controvertida, defendendo um ponto de vista e expondo somente a essência da coisa, sem perder tempo com detalhes.
Quanto ao trabalho escrito que o professor pediu, o fiz exatamente dentro das instruções, com quatro páginas (ele disse de três a cinco), aplicando alguns dos conceitos teóricos aprendidos a um caso concreto. A maioria do pessoal não fez isso, executando trabalhos com mais de 10 páginas e com estatísticas pra todo lado. Mas nessa aí, seu entrar pelo cano, levo inteiramente a crédito de falta de experiência.
Uma notícia com que vibrei nessa semana foi com uma carta do [Julian] Chacel (diretor do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação), a quem está subordinado o CAE, ao Werner, dizendo que “muito em breve a opressão que o Ney [Coe de Oliveira, responsável administrativo pelo CAE] está impondo aos bolsistas do CAE será aliviada”, o que pra mim só pode significar que vão chutar o homem. Está aí que a Fundação, sem o Ney, e com a aposentadoria do [Eugenio] Gudin, [Octavio Gouvêa] Bulhões e [Alexandre] Kafka, até que está um lugar bom para trabalhar, com o Chacel e o [Isaac] Kerstenetzky, mais o Simonsen indo provavelmente dirigir a nova Escola de Pós-Graduação em Economia.
11/11/1964: Ontem estava chateado por causa das aulas de Matemática, que estão tremendamente abstratas e exigindo um tempo de estudo que está prejudicando as matérias para crédito. Estava pensando até em deixar o curso, como alguns já fizeram e muitos outros estão fazendo, mas depois resolvi aguentar a mão mais um bocado. O chato é que o ano passado, o mesmo curso, com outro professor [John C. H. Fei], foi excelente: realmente matemática para economistas; mas esse ano, o camarada [Hal Varian] se perde em cada recanto de preciosismo que está enchendo, também porque sei que nunca vou encontrar aplicação na economia para pelo menos metade do que ele está lecionando. [Ou seja, queria cálculo e álgebra linear, mas Varian só oferecia análise real!].
Primeiros resultados
12-13/11/1964: Ontem, o professor entregou as notas de Comércio Internacional para o trabalho escrito e o exame. As notas aqui são as seguintes, de cima para baixo: honors (10), honors-minus, high-pass-plus, high-pass, high-pass-minus, pass-plus, pass, pass-minus (7,5), fail. Mas o sistema se complica mais porque essas notas podem não ter uma valoração absoluta, mas servir de valor relativo. Por exemplo, se a prova for muito difícil, a melhor prova pode ganhar um honors e as restantes serão avaliadas em comparação com a primeira. Para o Master, Yale não pede mais do que pelo menos dois high-pass e aprovação em todos cursos. No trabalho escrito, tirei a nota máxima que eu mesmo me daria, high-pass-plus. O tamanho não foi, possivelmente, um handicap. De qualquer modo, 2ª. feira vou conversar com o professor, para saber exatamente o que ele queria para eu me preparar para o segundo trabalho, que vou fazer sobre a estrutura tarifária (impostos sobre importação) brasileira. Já na prova, algo surpreendentemente, ele me deu um honors, que parece ter sido o único (mas não tenho certeza) da sala: pelo visto, ele parece não ter exigido tanto rigor quanto o que estava eu pedindo de mim mesmo (no trabalho, alguns tiraram honors-minus). Bem, de qualquer modo não está mal para começar e serviu para me animar mais ainda a estudar.
E parece que vou precisar desse ânimo nesse fim de semana, que tem o jogo Yale v. Princeton, final de temporada [do campeonato de futebol americana da Ivy League], e a cidade está a toda animação, com garotas a mais não poder chegando para o fim de semana. E o caso é que quarta-feira tem uma prova de Análise Econômica, com um bocado de matéria pra ser revista. Afora as outras cadeiras, que já está tudo ameaçando acumular de novo (puxa, a gente não pode parar um minuto!). De qualquer modo, já fiz um planejamento aqui, de modo a liberar sábado à noite, que tem um mixer (essa é uma festa que a gente vai sem date, compreendeu?) no Hall of Graduate Studies, que está prometedor, e esse eu não perco nem pagando, mas o jogo naturalmente vai ficar pra próxima.
Hoje recebi carta de colega de turma na Faculdade, descrevendo a vidinha de economista aí em Belo Horizonte, que, francamente mamãe, me deu até um arrepio só de pensar que depois disso tudo vou voltar aí pra ter esse mesmo tipo de vidinha – no duro, depois de uma experiência cosmopolita dessa ia ser a própria frustração voltar pra dar umas aulinhas na Faculdade de manhã e dividir a tarde entre Assembleia [Legislativa, onde trabalhava] e Banco de Desenvolvimento. Natural, há que qualificar isso que acabo de dizer. Se for só pra começar, tendo certeza de não cair na rotina (isso é o meu grande espantalho), até que toparia: não vou voltar esperando que todo mundo se ajoelhe a minha passagem; até prefiro começar por baixo para conquistar tudo pelo meu próprio esforço, que no fim é sempre tão fácil e a autossatisfação muito maior. Mas cá entre nós, que Belô não é mole não.
18/11/1964: Agora, estou na biblioteca do Economic Growth Center, depois de fazer a prova de Análise Econômica, que foi relativamente fácil, o que pode significar que o professor [Carlos F. Díaz-Alejandro] vai ser dureza na correção. O de que gosto nesse curso é que ele, não usando muita matemática, está me obrigando a raciocinar em termos “literários” e de certo modo melhorando meu bom-senso. A matéria é mais ou menos a mesma que Simonsen repassou na Fundação, só que lá, como era pra resumir quatro anos em seis meses, tudo praticamente era na base da simbologia, metodologia e raciocínio matemático, porque senão não dava tempo.
21/11/1964: Já são 17h30, hoje é sábado, logo está na hora de encerrar o expediente de leitura, que hoje se constituiu de: O. Lange, On the Economic Theory of Socialism; M. Gilbert, The Problem of Quality Changes and Index Numbers; T. W. Schultz, The Doctrine of Agricultural Labor of Zero Value.
27-28/11/1964: Essa semana o Diaz-Alejandro soltou as notas do teste de Análise Econômica e eu fui um dos quatro com honors-minus, a nota máxima que ele deu. Por uns míseros três pontos, deixe de pegar o honors limpo, mas como foi está danado de bom. Só que acho que na outra turma, o professor [Bela Balassa] foi mais camarada e deve ter soltado algum honors. Na prova de Comércio, depois fiquei sabendo, teve um indiano que conseguiu honors tanto no paper quanto no teste. Decididamente, isso aqui não é aquela brincadeira da Faculdade, nem aquela relativa facilidade do CAE: competição internacional é mesmo competição internacional! O fato de me preocupar com colocação nas provas tem muito de vaidade, mas também um bocado de objetividade: a política de Yale é de não passar o pessoal do Master para o Ph.D., a não ser os 2 ou 3 primeiros entre os 25. E mesmo que não vá ficar para o doutorado, é sempre mais divertido correr na raia de cima do que na de baixo. Agora, antes do Natal, tenho que entregar um paper para Comércio Internacional e, logo no início de janeiro, um outro para Análise Econômica (indicando a um líder revisionista como ele pode utilizar o sistema de preços da economia capitalista para administrar uma sociedade socialista…).
30/11/1964: Taí, hoje fazem três meses que aplainei nessa terra, e olha que já aconteceu coisa nesse período. É gozado o modo com que estou reagindo às coisas desde sei lá quando. Enquanto estão ocorrendo, a participação é total, um engajamento absoluto ao presente, mas assim que acabam de ocorrer parece que aquilo foi há um longo tempo, ou algo que alguém me contou de sua experiência própria que me impressionou. Isso é porque, acho, o presente me é tão cheio de novas experiências, de diferentes sensações; e o futuro, o próximo futuro, é uma espécie de esfinge que me propõe o “decifra-me ou o devoro”, mas ligeiramente modificado para “decifra-me ou o ignoro”. Minha energia vital está a toda e a ânsia de viver, de participar no plano sensível e intelectual é inesgotável.
11/12/1964: Na aula do Mr. Ruggles tivemos um lecturer de fora, chefe do departamento de estudos fiscais da ONU – e já viu que eu falei um bocado na aula e depois da dita fui bater um papo com o sujeito, que é a figura escrita do diplomata. Esse aí, se precisar um dia, está garantido que vai se lembrar de mim: é sempre bom acumular uns créditos para o futuro, porque do lado que a bola vier a gente chuta em gol!
15/12/1964: Esse fim de semana concluí mais um paper para Comércio Internacional, dessa vez, The height of the Brazilian tariff level and its protectionist significance. Esse saiu com nove páginas e até que estou satisfeito com o que resultou. É um trabalho modesto sem quaisquer conclusões heroicas (ao contrário do anterior), mas penso ter coligido uma bem estruturada background information.
18/12/1964: Estou de férias desde ontem à tarde, quando entreguei o paper de Comércio Internacional. E quando, de súbito, vi que não tinha que preparar a aula de amanhã foi que me dei conta do estado de estafa em que estou: hoje não posso nem olhar pra livro de Economia. E na hora também deu um vazio danado. Hoje, já me estou reequilibrando, de modo que, como bom economista, tratei de pôr no papel o plano de férias: 19-20: Boston; 21-22: Nova York; 23: telefonema a mamãe; 24: Natal na casa de Mr. e Mrs. Tassi; 25: ISC party; 26-29: Chicago [fui a Washington, DC, na verdade]; 29-4: estudo.
Só que estou achando que o período de 29 a 4 é insuficiente para um paper para Análise Econômica, prepara um monte de exercícios de Matemática e ler pelo menos umas 300 páginas para Desenvolvimento Econômico. Matemática agora melhorou um pouco, mas de estrangeiro, afora eu e Clóvis, só ficaram dois africanos.
Na 4ª. passada fui ao Christmas Party do Economic Club em que mantive contato com um economista francês, ora lecionando em Yale, e que passou o ano passado na Tunísia (dentro do mesmo programa no qual Werner foi ao Brasil). Afora um bate-papo sobre economia tunisiana e um relato das farras do Bourghiba Jr., ele me disse que acha que em dez anos economista sem Ph.D. não tem vez. Mas naturalmente eu poderia escrever a tese no Brasil, que pra passar mais de um ano e meio em New Haven só com vocação pra santo. Ele mesmo disse que qualquer emprego que aparecer, fora daqui, ele está pegando: realmente, pra um cara solteiro, menos novo, isso aqui deve ser fogo.
Aliás, a 4ª. feira foi extremamente intelectualizada. Para o almoço, fui convidado por dois estudantes de graduação em economia ingleses, ao Berkeley College. Aí, discutimos problemas do balanço de pagamentos da Inglaterra e de inflação no Brasil. À noite, chamei um colega indiano pra vir jantar aqui no apartamento. E aí o problema foi naturalmente como implementar o controle da natalidade, com ele me explicando as dificuldades da Índia nesse ponto. Ainda na festa, um bate-papo com um economista da Noruega e um especialista em Islândia – que paradoxo, aqui o problema é como aumentar a população, porque há uma tremenda falta de braços. Naturalmente, o problema tem sua solução facilitada pelas longas noites de inverno…
Bom agora vou voltar ao meu “Rasputin – Santo Demônio”4, que comprei ontem e é uma delícia. E tem que sobrar tempo pra uma entrevista de doze páginas do Martin L. King a uma revista daqui5.
[Intervalo de férias, quando estive em Cambridge, MA, Nova York e Washington, DC. Retorno a NH em 29/12]
Ano novo, vida igual
03/01/1965: Continuo embrulhado com o paper sobre socialismo, que já vi que vai sair uma bomba. Queria terminá-lo hoje, mas também não vai dar, porque esqueci que a biblioteca está fechada de 31/12 até amanhã, e preciso consultar mais uns livros.
Mas agora que a porca vai torcer o rabo. Duas semanas de aulas, a partir de amanhã, e duas semanas de provas, encerrando os cursos do primeiro semestre. Tem um curso que estou meio apavorado – esse paper está me enchendo – e esse pessoal aqui não brinca em serviço mesmo: quase todo mundo ficou foi estudando as férias todas. Em penitência pelas minhas malandragens, entrei o ano estudando. Mas agora estou com outra disposição pra mandar brasa no estudo.
No dia 30 chamei o Roy Clark pra jantar aqui no apartamento. Este é um economista de Barbados, do curso, e com quem tenho mais amizade. É um mulato bem simpático, educado na Inglaterra, com estágios no Canadá e nos Camarões, e que fala o inglês mais límpido que já ouvi. E é bon vivant feito ele só. Esse dia foi só pra trocarmos bravatas sobre as aventuras das férias, que ele é que não ia ficar aqui estudando também.
05/01/1964: Hoje veio uma comunicação do Departamento das datas das provas – horror! – finais do semestre: 21: Contabilidade Nacional, 25: Análise Econômica, 27: Comércio Internacional, 28: Desenvolvimento Econômico. Quarta-feira que vem, acho, encerram-se as aulas, propiciando uns dez dias para revisão geral da matéria. Dia 1º de fevereiro iniciam-se os cursos do segundo semestre.
Deixe as provas passarem para a gente acertar sua viagem [à Europa, no verão]. Mas isso vai depender de se Yale me permite continuar, porque não sei que política eles vão adotar esse ano…dentre outras coisas.
19-20/01/1964: Segunda à noite finalmente terminei a questão da prova de Contabilidade Social, depois de lutar com ela desde sexta à noite e por todo fim de semana. Parece que saiu algo apresentável. O problema agora é transcrever todo esse material nas duas horas de prova depois de amanhã.
Hoje, comecei a “brigar” com o ‘Estudo Econômico Mundial: Comércio e Desenvolvimento, da ONU’, de que tenho que ler duzentas páginas (das grandes), espaço um, e para que não estou com a mínima disposição. Em geral, parece que vai dar tempo de rever pelo menos os mais importantes artigos para cada cadeira. De modo que vou entrar nas provas com aquela confiança desconfiada de mineiro.
Quanto àquele paper sobre Socialismo, acabei o terminando naquele dia mesmo. O jeito foi pôr umas piadinhas sobre Stalin, Sibéria e outras desse tipo (o professor [Díaz-Alejandro] é um gozador) pra ver se ele se esquece da qualidade e dá nota pela originalidade. Segunda-feira vou saber o resultado.
25-26/01/1965: Hoje meu expediente se encerra mais cedo, às 13h, que o batente foi meio puxado. Ontem, prova de manhã, estudo à tarde, ginásio à tardinha e novamente algum estudo à noite. A prova hoje foi de Análise Econômica me parece que fui bem; das cinco questões, apenas gostaria de remendar uma das respostas e parte de um outra. Também tenho acertado na cronometragem do tempo das respostas – coisa geralmente importante aqui. Hoje terminei a prova 15 minutos antes do tempo, com uma média de 32 minutos por resposta, contra um máximo de 35 minutos. Na prova de Contabilidade, também levei a questão preparada, com a cronometragem exata de duas horas e, começando a escrever às 9h, às 11h pus o ponto final na prova, embora tivesse que correr um bocado no final.
Afora a letra o que me preocupa na prova do Ruggles é que não me dei muito ao trabalho de reescrever o que tirei de diversas fontes, apenas pondo tudo junto. Um bocado disso por causa de preguiça, mas uma boa razão é o meu inglês desnutrido. Em todo caso, acho que usei um bocado de material e fiz a prova na medida para agradar as ideias do professor (que, afinal, não são tão más assim…). O tema era: descrever as modificações estruturais da economia americana no último decênio, como refletidas nas contas nacionais e outras estatísticas americanas. Apreciar a validade conceitual e estatística desses dados para esse tipo de análise e outras, e sugerir tópicos de informação necessária para carregar a análise.
O inglês, nas provas, não tem dado muito trabalho. Mas bem que eu fico chateado com umas construções grosseiras e termos inapropriados a que sou, volta e meia, obrigado a recorrer. Quando estou com pressa, então, é que a coisa sai estropiada mesmo.
Amanhã quero fazer uma revisão de cinco artigos para Comércio e, à noite, me dedicar às notas de aula e resumos de artigos lidos no correr do ano. Embora entre no exame com boas notas anteriores, não me sinto seguro nessa matéria. Vai ser preciso de um bocado de inspiração.
Desenvolvimento, no dia seguinte, é que são elas. Me parece que as perguntas vão ser de um caráter muito geral, dando margem a voos de imaginação e eu prefiro exames mais analíticos – mas o professor é pouco estimulante, apesar de ser famoso nome “mundialmente conhecido”. Aliás, do de Comércio – que vai mudar – também não gostei tanto.
É, parece que a carta de hoje foi extremamente acadêmica, mas esses dias não entra mais nada em meu horizonte!
30/01/1964: A prova de Comércio parece que foi bem. Aliás, tem que ter sido, porque a de Desenvolvimento foi uma porcaria. Em boa parte, porque vagabundei um bocado nessa cadeira. Mas é que o [Lloyd] Reynolds é tão tedioso que até desanimava a gente de estudar. Análise Econômica também tem que vir nota boa, porque o Ruggles [professor de Contabilidade Nacional] me deu high-pass-plus, o que me deixa em 3º. lugar com uma porção de gente junto. Fiquei meio decepcionado, pra dizer a verdade. O fato é que estou meio “estragado” pelos constantes elogios e preciso me convencer que águas passadas não rodam moinho. E que não sou melhor que ninguém pra estar vagabundando, quando o pessoal está estudando.
Segundo semestre
Segunda-feira começa o spring term (um dia de férias – hoje!). Mas o próximo semestre vai ser mais duro que esse. Já desisti do curso de francês e vou abdicar do curso do Werner [Seminário sobre Economias Latino-Americanas], que ia tomar como ouvinte. Conforme vierem as outras notas, também deixo Matemática para depois. Em todo caso, Estatística entra agora (matéria para a qual nunca tive paciência), com duas aulas por semana. E o jeito vai ser moderar meus fins de semana. Em Desenvolvimento, entra o [Gus] Ranis, que é duro, mas entende da coisa e sabe do que fala. Em Comércio, entra o Mead, que dizem ser duro na nota como o quê. Análise Econômica continua com o Diaz, de quem gosto, e que é a nota mais importante no julgamento final.
01/02/1965: Enquanto o professor de Estatística não chega, vou aproveitando para o bate-papo bissemanal. Como esperava, Análise Econômica e Comércio Internacional foram bastante bem. Tirei as melhores notas em ambas cadeiras, na primeira com dois outros alunos, na segunda com um outro. Fiquei com honors-minus em Análise: no paper sobre Socialismo ele me deu honors-minus e na prova final tirei os 100 pontos todos. Cá entre nós que ele bem podia me “limpar” o honors, que para os outros ele considerou a final com um peso muito maior. Em todo caso, meus 187 pontos nas duas provas foram o máximo da sala. Em Comércio Internacional, [Gerry] Helleiner me deu um honors limpo e até me cumprimentou pelo “very good” teste.
É, foi uma pena aquela horrível prova de Desenvolvimento. Cada vez que penso nela, mais erros descubro ter cometido. Vou ter que me virar nesse 2º. semestre, pra não dar vexame na prova final do ano, que ainda pode salvar a nota final.
Marquei uma hora pra conversar com o Ruggles amanhã, que quero descobrir o de que ele não gostou em minha prova de Contabilidade.
Vou também conversar com o Werner pra ver o que ele acha de eu abandonar o curso de Matemática, para me concentrar nos cursos para crédito, agora que entrou Estatística com duas aulas por semana.
Mas acho que tenho que esperar a nota de Desenvolvimento, para descobrir qual é minha situação em termos relativos. Mesmo que seja boa, há ainda a considerar a posição em termos absolutos, que não vai se apenas por estar entre os melhores estrangeiros que Yale vai me aceitar para o doutorado. Muito justamente – porque aceitam apenas 25 alunos por ano têm que dar preferência para os americanos, entre os pedidos de inscrição para o doutorado.
Mas de vez em quando fico pensando: o que quero com mais um ano aqui? Afinal, não vou ter senão uma escolha, se quiser completar os cursos de doutorado, que os três outros são praticamente obrigatórios: teoria, estatística/econometria e história. E não tenho a mínima disposição para dedicar, depois, todo um ano ou ano e meio para preparar uma tese decente
Mas deixa pra lá que não quero planejar senão para este ano. Se bem que uma experiência mais longa em organização internacional me soa tentadora.
05/02/1965: Acho que vou gostar deste semestre. Estatística não deve ser tão ruim assim, parece. Em Análise Econômica e Comércio Internacional entra matéria de que gosto e as reading lists não estão tão grandes assim. Ranis não é bom didata, mas o curso de política do desenvolvimento parece que vai sair muito interessante, e é nesse que vou me dedicar mais (a nota do exame ainda não saiu, pobre dela!). E Furtado, Baer e outros especialistas na América Latina iniciaram um seminário sobre os problemas econômicos da região, que parece ser muito bom. E só vai tomar o tempo da aula, não exigindo trabalho, o que é melhor.
Ouvi dizer que Mr. Triffin talvez não esteja aqui ano que vem. Se for fato, vou considerar outro lugar para ir, porque ele é talvez a principal razão por que gostaria de ficar em Yale.
14/02/1965: Conversei com Mrs. Chamberlain [Secretária Executiva do Departamento] sobre o estágio [de verão]. Ela tinha falado com o Prof. Goldsmith, que estava na OECD (Paris), e ele disse que lá não dá, porque o Brasil não faz parte da organização. Mas resposta do pai do Dave [meu colega de apartamento, cujo pai trabalhava na OECD] ainda não veio. Também não dos amigos do Helleiner (GATT) e do Furtado (FAO). Escrevi ao tio [Oswaldo Lisboa, diretor do IBC], porque toparia a Organização Internacional do Café (Londres) inclusive sem pagamento por parte deles, porque acho que se a AID encrencar, fazendo uma forcinha o Departamento aqui me solta algum. Enquanto isso estou colocado com prioridade a entrevista com o pessoal do Banco Mundial (Washington, DC). O problema agora é o timing. Essa entrevista deve ser lá pelos abris, no máximo. Mas o limite para reserva dos Yale Flights é 1º. de março. Em todo caso, um outro amigo meu me disse que, se passar dessa data e a coisa sair, para eu falar com ele, que talvez consiga outro voo desse tipo.
15/02/1965: Essa é absolutamente inacreditável! “This was, I think the best paper in the class – very original and good throughout. I hope you will be able to stay here for further work toward the Ph.D. Honors. Lloyd Reynolds”. Da. Maria — e o Reynolds acontece de ser o Diretor Executivo do Economic Growth Center, a segunda voz dentro do Departamento de Economia – não é formidável?
Mas que minha prova é pura conversa para boi dormir ninguém me convence do contrário.
Só que dessa vez acertei em cheio na psicologia do professor. Ele vibrou – “very true!” observou – com minha conversa de que planejamento do tipo que a gente faz aí e só para conseguir dinheiro do Banco Mundial ou da USAID, que utilidade mesmo não tem. Mas a maior foi a observação que fez à minha resposta a o que modificaria na economia tradicional (“Western economics”) se fosse escrever um livro texto para alunos de países subdesenvolvidos – uma conversa fiada danada e o professor diz lá “very interesting analysis – I may use it myself!”. Esteja à vontade, mas não conte para ninguém!
O provável resultado é que agora acabou a minha vida boa e voltarei às aulas de Matemática, que senão acabo é descambando para a malandragem total.
P.S. – Então, a coisa ficou assim: Contabilidade (HP+, 3º.), Análise Econômica (H-, 1º.), Comércio (H, 1º.) e Desenvolvimento (H, 1º.). É, pra começar não está mal… Ah, o cara de Matemática acho que ficou com dó de mim e meu de um high-pass pelos “para casa”.
19/02/1965: Sexta-feira à noite, decididamente “pregado” no fim de uma exaustiva semana. Pelo jeito, parece que pelo menos esforço físico esse semestre vai exigir mais do que o anterior. Hoje, tive uma aula (2 horas), pela manhã, e um seminário (outras 2 horas), à tarde – este o Seminário do Centro, hoje com o mais famoso especialista em finanças públicas americano, [Richard] Musgrave, que foi uma decepção, discorrendo sobre o óbvio o tempo todo. De manhã, foi a aula de Desenvolvimento, com o Ranis, que entende do riscado, coautor do modelo Ranis-Fei de desenvolvimento econômico, o primeiro approach teórico abrangente sobre esse tema – válido essencialmente para países do sudeste asiático.
Um “paper” trabalhoso
19/02/1965: Ontem foram duas aulas e um seminário. No último, Seminário Latino-Americano, Diaz, professor de Análise Econômica, fez uma interessante exposição sobre sua pesquisa estatística comparando produtividade industrial na Argentina e nos EUA, que aparentemente contradiz, em seus resultados a teoria aceita [como explico adiante]. Ele me sugeriu que fizesse o mesmo com o Brasil no lugar da Argentina, e segunda-feira vou conversar com ele, provavelmente aceitando, que assim apresento o trabalho como paper na cadeira de Desenvolvimento. Mas vai dar um trabalho de doer, exigindo elaboração de enormes séries estatísticas e provavelmente dando o que fazer ao computador eletrônico. Em todo caso, é o tipo de treinamento de que estou precisando, pois nunca fiz uma pesquisa econométrica desse tipo.
03/03/1965: Que é 4ª. feira sei porque hoje teve aula de Estatística. Mas se é dia 3 não tenho certeza, porque a aula estava tão chata (como soem ser as aulas de estatística, aqui como em qualquer canto do mundo), que nem data no papel de notas coloquei. Não entendi o porquê da confusão com meus planos [para o verão]: Se sair Londres, estou lá. Se não, fico em Washington, DC. Num e noutro caso apenas para a temporada de verão – começando em qualquer data a partir de 26 de maio e terminando qualquer data até 7 de setembro. A partir desta última data, caso os exames finais de maio confirmem os do primeiro semestre, segundo ano de Yale. Nada mais simples.
Cheguei à conclusão que as estatísticas do Brasil eram insuficientes para o meu trabalho para Desenvolvimento. Agora comecei a trabalhar com as estatísticas do México e até 6ª. feira saberei se dá pra sair alguma coisa, como é bem provável que sim. Que coisa, dos menos subdesenvolvidos dos subdesenvolvidos, acho que o Brasil não perde para ninguém em matéria de deficiência de estatísticas.
07/03/1965: Dentro de duas semanas tenho as férias da primavera e não me decidi ainda o que fazer. O certo é que até lá ainda tenho duas provas de meio-termo, de Análise Econômica e Estatística, sendo que para a segunda já é tempo de eu sentar-me e treinar alguns daqueles chatérrimos exercícios, que senão entro bem.
Mas estou achando que meu trabalho para Desenvolvimento vai me tomar boa parte das férias. As estatísticas do México são muito boas (exceto por um dado crucial) e o que mais fiz nesta semana foi tirar números dos censos industriais desse país e dos EUA. E agora estou com 44 colunas de números, cada coluna com 52 fileiras, o que dá um total de 2.288 números. Isso é só a matéria prima com que vou trabalhar: agora começam as computações estatísticas, multiplicando cada coluna, número por número, pelo menos por uma outra, e depois ainda fazendo as mais diversas operações com os resultados. Se não ficar doido dessa vez, acho que sou imune à insanidade mental. Mas a coisa é realmente interessante e por isso estou disposto a passar as férias trabalhando nela. Meu professor de Análise Econômica [Díaz-Alejandro] foi quem teve a ideia de testar uma hipótese sobre diferenças de produtividade industrial entre países subdesenvolvidos e desenvolvidos, de um famoso autor, Hirschman, hipótese contrária à teoria geralmente aceita [segundo a qual, em relação aos países desenvolvidos, a produtividade nos países subdesenvolvidos seria maior em bem intensivos no uso de mão-de-obra]. Ele usou dados da Argentina e dos EUA e realmente encontrou algum suporte para a tese. Entretanto, os dados estatísticos que usou eram fracos e incompletos, e teve que recorrer a medições indiretas. O fato é que conclui o paper dizendo que a conclusão que poderia tirar era que a hipótese merecia investigação mais profunda. E, realmente, é algo importante, ligado ao próprio critério de investimento que um país deve adotar para desenvolver-se. Com os dados que tenho, acho que poderei chegar a algumas conclusões significativas e inclusive já bolei uma maneira de testar outras explicações alternativas, caso os dados venham a aparentemente confirmar a tese de Hirschman. Depois dessa divagação, o jeito é ficar por aqui, mesmo porque esses dias estou com ideia fixa nesse trabalho e você sabe como nós os Lisboas somos nessas ocasiões.
16/03/1965: Agora também já me apareceu um convite para trabalhar no Comitê dos Nove da Aliança para o Progresso, em Washington, DC, no verão. O Díaz, que é meu professor, quer que o ajude na revisão do plano da Venezuela, inclusive com a chance de dar uma chegada a Caracas. E, depois, se quiser ficar definitivo, o negócio é na base de 8.000 ou mais dólares por ano, livre de imposto de renda. Entra em 3º. lugar na lista de prioridades…
19/03/1965: Entrei hoje em férias, por duas semanas. Estes três últimos dias foram de atividade intensa. Quarta, Furtado falou no Seminário Interdisciplinar Latino-Americano sobre problemas agrários do Nordeste. O homem é realmente grande, Da. Maria! Quinta, Matemática e Comércio pela manhã, Shane Hunt [professor assistente do Departamento de Economia] falando à tarde no Seminário Econômico Latino-Americano [ambos seminários são coordenados pelo Werner] sobre setor externo do Peru, e [Harvey] Leibenstein, professor em Berkeley, à noite, em palestra sobre Critérios da Economia do Bem-Estar. Hoje, Desenvolvimento pela manhã e Leibenstein de novo, à tarde, sobre a função empresarial no processo de desenvolvimento.
19/03/1965: Sobre o retrato [da turma de mestrado, anexado] saindo de aula do Díaz. O argentino [Guillermo Calvo] também é capaz de ficar [para o doutorado] – e parece que somos só os dois. Gomez e Funaoka retornam para os bancos centrais dos respectivos países, onde trabalham; Ofosu-Benefor quer estudar mais, mas a Central de Planejamento de Gana não quer deixar; Thompson e Roy estão aplicando para trabalhar nas Nações Unidas. Clóvis está meio indeciso, mas talvez fique um ano na OEA em Washington, DC.
[Na foto, da esquerda para a direita: eu, John Ofosu-Benefor (Gana), Mario René Gomez (Guatemala), Guillermo Calvo (Argentina), Clóvis Cavalcanti, Funaoka (Japão), Thompson (Trinidad e Tobago), Roy Clark (Barbados)]
23/03/1965: Bota mais essa na sua coleção: “Permit me to congratulate you on your performance at Yale to date”, fecho de carta de meu project-manager, Mr. McCall, na USAID em Washington, DC.
Às noites, tenho tido a companhia do Marechal Presidente [Castelo Branco], em sua Mensagem-1965 ao Congresso, mas essa vai rápida, são menos de 200 páginas. Terminando ela, aguardam vez Dostoiévsky, Faulkner, K. A. Porter, A. Huxley e Hemingway, comprados outro dia numa “queima” da [Yale] Co-op.
28/03/1965: Esses dias foram todos por conta do paper que agora já está tomando forma. Amanhã coloco o computador para roncar pela terceira e última vez e, em seguida, termino a primeira versão. A coisa está interessantíssima, apesar de não se ter confirmada a hipótese que queria testar, mas os subprodutos é que vão dar a festa. O Carlos Díaz foi de uma amabilidade sem par, interessando-se por cada fase do meu trabalho e preparando todo material do jeito que o computador gosta de engolir, inclusive pedido a sua secretária que perfurasse os cartões. Agora me propôs que, assim que termine o meu paper, façamos outro juntos, com dados do México, Argentina e EUA. Se este der certo, então, alargamos mais a investigação, para abranger o maior número possível de países latino-americanos. Espero que ele fique em Yale para o ano, pois, se isso sair, não preciso me preocupar mais com tese doutoral, pois esse tema, apesar de bastante importante, ainda é virgem e, o que é melhor, parece haver estatísticas disponíveis (com exceção das brasileiras…).
02/04/1965: Puxa, agora é torcer os dedos e esperar que o Mr. Otto Eckstein esteja de bom humor quando ler meu paper. Esse é o editor da Review of Economics and Statistics, uma das mais famosas revistas especializadas da América. O Díaz leu meu paper hoje e disse que era só anexar uma tabela de estatísticas e enviar para a dita revista, que ele não via qualquer restrição que pudesse fazer ao que eu escrevera. Ele queria que eu mandasse hoje mesmo, mas preferi esperar que o Clark Reynolds [professor-assistente do departamento de economia, que escrevera livro sobre o México na série de estudos de países do Economic Growth Center] desse um olhada. O Díaz participou de muito perto de todo processo de elaboração do paper e pode ser que por isso esteja mais entusiasmado que o autor ache justificado… Mas se o Clark julgar ok, terça-feira o Mr. Eckstein está com a brasa nas mãos, embora antes deva entregar uma cópia ao Ranis, já que o paper o fiz como requisito de seu curso. Mas cá entre nós que esse negócio de ser publicado na Review of Economics and Statistics era o tipo de coisa longínqua para mim. Não é por modéstia não, que desse pecado não morro, mas é como uma torre de marfim cujas portas estão solidamente cerradas para mim, por enquanto. Mas se sair…que ano, me poupou pelo menos outros cinco de carreira profissional!
Reta final
06/04/1965: Ontem iniciou-se o último período de aulas, que deve estender-se até 15 de maio, depois, período de provas, e em 26 de maio devo estar com o meu Master em mãos. Espero sobreviver até lá, porque já estou cheio de aulas. Mas hoje parece que o sol resolveu dar as caras e lá pelas duas da tarde estava um calor abafante, lá pelos 15 graus centígrados!
Hoje fiz meu pedido de inscrição no curso do doutorado e, dentro de uma, duas semanas, devo ter um documento preliminar de aceite em mãos, para enviá-lo à USAID em Washington, DC, para renovar minha bolsa para o ano.
Hoje também enviei o meu falado paper para a Review of Economics and Statistics e uma outra cópia para o Hirschman. A reação do Clark Reynolds foi bastante menos entusiástica do que a do Díaz, mas como este continua achando que devia mandar como estava, lá se foi o bicho. Para mim, o paper está nos limites do publicável, se o ‘seu’ Eckstein amanhecer de dor de barriga ou brigado com a mulher, me manda de volta; se tiver recebido uma promoção ou terminado de escrever algum livro, então o aceita. O mais provável é que o mande volta para reescrevê-lo em forma de comentário a anterior paper do Díaz, do qual o meu parte. De qualquer modo, pelo menos o inglês tem que ser melhorado e algumas partes retocadas antes de ser publicado, se o for – mas isso tomará ainda um ano mais ou menos, que a concorrência para a Review não é brincadeira, e poderá ser feita a revisão quando se aguarda publicação.
É, mas até o ambiente dessas curriolas intelectuais se parece com o daí. Cada um interessado em sua própria promoção e no rebaixamento do trabalho dos outros. O que o Clark gostou foi de eu ter “arrasado” a tese do Hirschman, bem como a interpretação que a essa tese o Díaz deu – como se o objetivo de trabalho científico fosse arrasar quem quer que seja.
O curso do Díaz é realmente frequentado na maior parte por estrangeiros [como os que apareceram na fotografia anexa]. Os americanos, no doutorado, têm que tomar outro curso, mais ou menos similar. Isso vai me criar dificuldade no ano que vem, pois o curso avançado de teoria pressupõe ter-se tomado o outro, que na verdade é mais pesado do que o do Díaz.
11/04/1965: A prova de francês, ontem, acabou sendo bem mais fácil do que esperava. Tinha entendido que eles iriam exigir compreensão oral, e até andei ouvindo uns tapes – dois na verdade, lá no Laboratório de Línguas, mas vi que não adiantava muito. Afinal era só compreensão de leitura. A 1ª. parte com frases faltando pedaços, para a gente fazer a escolha entre quatro expressões para as completar. Essa foi meio ruinzinha, que meus vocabulário e gramática estão bastante fracos. Já a 2ª., uma série de textos (três a quatro parágrafos cada), a maioria sobre ciências sociais, seguidos de perguntas interpretativas, também do tipo múltipla escolha. Essa acho que não teve grandes problemas. Em ambas não precisei nem 2/3 do tempo dado. É capaz de ter dado para passar.
Vou ver se convenço o Departamento de que preciso cuidar de minha tese no Rio no verão. O diabo é que estava querendo escrever sobre o plano de estabilização [brasileiro] e o Werner chegou dizendo que o [Roberto] Campos não aguenta mais que dois meses!
14/04/1965: O que quero saber do Werner é se conversou com o pessoal da Fundação [Getúlio Vargas] sobre minha tese [de doutorado, para o mestrado não tinha tese]. Preciso arrumar um assunto para ver se o Departamento aqui me paga uma viagem de “pesquisa preliminar”. Se não conseguir isso, preciso arrumar um plano para ganhar algum aí talvez um estágio de um mês no Ministério do Planejamento (pago), um mês de aulas (pagas) na Faculdade [de Ciências Econômicas da UFMG] para a turma que for fazer o concurso da Fundação e um mês para me badalar.
18/04/1965: As novas agora só se referem aos arranjos para minha ida ao Brasil [no verão]. Werner voltará de Nova York amanhã e então poderei acertar os ponteiros. Minha ideia agora é aproveitar a chance (contando que o Campos não caia antes) e estagiar no Ministério do Planejamento para preparo do material para minha tese (ou então, na Fundação Getúlio Vargas – vai depender do tema específico, que quero discutir com Werner). Assim, já no ano que vem, tomo o tal de Seminário de Pesquisa como meu quarto curso (o que quer dizer que não vai ter o esperado Triffin) e, uma vez passadas as orais (setembro 1966), já estou com a dissertação bastante adiantada, quem sabe a tendo pronta já para abril-67, recebendo o meu Ph.D. em julho daquele ano (oh, sonho dourado!).
20/04/1965: Jantei com o Werner na 2ª., ontem, e ele achou meio sobre o difícil conseguir todo o dinheiro de que precisaria para passar três meses no Brasil. Por isso, a ordem do dia, até segundo aviso, é passar dois meses, junho e julho, na Organização dos Estados Americanos, em Washington, DC, e um, agosto, no Brasil.
E é melhor guardar um pouco de entusiasmo, porque o paper o mais provável é que não o publiquem: cada dia que o leio, acho-o pior.
24/04/1965: Ontem, apresentei os resultados de meu paper na aula do Ranis. Segundo o Diaz veio depois me contar, o homem gostou da coisa e acha que se pode publicar. Agora, estão dois a dois os palpites sobre se publicam ou não, de acordo com as simpatias pessoais dos palpiteiros sobre a hipótese que testei… A opinião do Ranis é valiosa, claro, mas ele ainda não leu o paper e o filho de Da. Maria aqui sabe impressionar numa exposição, mesmo com meu estropiado inglês. Um dia antes, convenci a secretária do Ranis (um encanto!) que devia tirar cópias xerox das tabelas estatísticas do paper de graça, as quais distribuí à turma, para “ilustrar” – e até que usar giz de cor para desenhar uns gráficos bonitinhos no quadro negro impressiona pra burro.
Bom, de qualquer modo, agora estou um pouco mais esperançoso do que antes. Mas cá entre nós que, em certo sentido, ter um artigo publicado na Review é até mais importante do que o título de Master que Yale me dá no mês que vem. De modo que continuo a não acreditar na publicação, a não ser na forma de comentário como lhe disse. [Estava certo, o artigo não foi aceito pela Review of Economics and Statistics. Posteriormente o publiquei, em espanhol, na revista mexicana El Trimestre Económico6].
Caminho aberto para o doutorado
01/05/1965: Ontem, depois de um seminário com um economista da Iugoslávia, Mrs. Chamberlain [Secretária Executiva do Departamento de Economia] me chamou para dizer que por esses dias devo receber uma notificação do Comitê Doutoral da Universidade, implicando o aceite, em caráter definitivo, de minha inscrição para o curso de Doutorado – e o que é relevante – antes de conhecidas as notas finais do curso, o que é um caso assim sobre o meio rebarbativo… Disse que a coisa saiu assim porque eles fizeram uma pesquisa com os professores sobre as notas de meio período (primeira parte do 2º. semestre) e o filho da Da. Maria não saiu tal mal assim…Mas pra mim ela deu uma mãozinha, que no fim me disse “mas aguenta a mão nas finais, também, olhe lá”. Quer dizer, agora caminho livre para comprar um carro, cuja não-possessão era um símbolo de minha “pureza”…
Para esse fim de semana quero ver se termino um paper para o Díaz, que vai sair uma bomba, porque dessa vez o México se provou um digno subdesarrollado com suas estatísticas.
11/05/1965: Acabo de datilografar o paper para o Díaz, a ser entregue amanhã. Tinha intenção de estudar um bocado de Estatística, mas haja paciência. Puxa, vou ter que me virar nesse fim de semana. As provas estão assim: 17, Díaz; 19, Estatística; 21, Comércio; e 25, Ranis. O paper não saiu tão ruim quanto temia, tem cada gráfico, nove na verdade, cada um mais colorido que o outro. Acho que vou pedir pro Clark Reynolds dar uma olhada nele também, que desconfio que tem carne debaixo de um angu que mexi lá, mas não consegui descobrir.
16/05/1965: O Correio esses dias tem-me feito umas falsetas. Uma foi o caso da carta do Dean da Graduate School, que me deu alguma dor de cabeça. Mrs. Tassi, que é secretária do Chefe do Departamento, me telefonou depois do expediente, para me ler muito na surdina a carta de aceite de minha inscrição, que deveria receber no dia seguinte. Aí nem esperei o Correio e fui logo falar com Mrs. Chamberlain para saber o que deveria escrever à USAID, para renovar a bolsa. Aí foi que a coisa encrencou, que ela estava meio surpresa que eu já soubesse da decisão. Vim correndo ver o Correio e – bulhufas. Pronto, pensei, meti a Mrs. Tassi numa fria. Fiquei na agonia o dia inteiro, mas, no dia seguinte, quando fui ao Correio buscar uma carta sobre que recebera comunicação de que viera faltando selo (motivo porque nunca poderia imaginar ser de Yale), a bendita era a dita-cuja, o que me aliviou um bocado.
19/05/1965: Já fiz duas provas, de Análise Econômica e Estatística – assim, assim. Nada de ruim, mas nada de excepcional também.
Também quero sentar-me e pôr no papel algumas ideias que tenho para a tese. Outro dia escrevi carta para uma amiga falando sobre o que estava pensando para a tese, e a coisa já começou a fazer sentido. Quero que o Furtado dê uma olhada, embora duvide que ele possa me ajudar muito (por causa das circunstâncias). Também o Werner. Mas o ponto mesmo é mandar uma cópia para o Simonsen, que em agosto converso com ele direito. O “campo” é o padrão de comportamento do setor privado industrial brasileiro, particularmente na escolha de técnicas, normas de investimentos e estrutura de ativos e passivos. A ideia é tentar isolar os determinantes desse comportamento e medir o efeito de políticas governamentais alternativas sobre esse comportamento. Depois (quando entender…) explico direito.
26/05/1965: Saíram duas notas hoje – H e H — Análise Econômica e Comércio Internacional. As outras duas saem amanhã. Acho que Estatística vai negar e espero que o Ranis não fique bravo com as piadinhas que pus na prova – aliás umas das três questões a fiz inteira na base da gozação (inclusive sobre o modelo do dito).
Estava discutindo com o Werner o outro meu tema predileto para a tese: “Por que falham os planos de estabilização na América Latina”. Uma análise das tentativas de estabilização no Chile (1955-56), Argentina (1959) e Brasil (1964). Tenho a intuição que o melhor modo de aproximar esse problema é o enfocando desde o ponto de vista do empresário privado – o agricultor, o industrial, o comerciante. O problema como sempre são as fontes de informação – as eternas estatísticas – inadequadas em geral.
28/05/1965: Você me pergunta sobre as solenidades do Master. Tem um cerimonial em alto estilo, o chamado University Commencement em que os títulos de Ph.D., M.A., B.A. e outros são entregues. Aliás, foi aqui, no Commencement de 1962, que Kennedy pronunciou o mais histórico (e realmente antológico) discurso de sua carreira. Este ano vai ser no dia 14 (mais cinco dias em volta, para solenidades complementares), em que espero já estar em outras plagas, não menos solenes, mas bem mais prometedoras. Mrs. Tassi vai tomar conta do diploma e outras bossas que houver para mim.
Se esse negócio de Londres não sair eu vou ficar é chateado. Ficar encolhidinho aqui, aguardando a resposta, sem mais fazer, não é coisa a meu estilo. Gosto de viver na base do 8 ou 80 (embora com uns 44 no bolso do colete…). Mas, gente, que sentido há em viver, senão viver intensamente? E há tanta gente que concorda com uma vida parada, um dia igual ao outro. Enfim, não tenho nada com isso. Nisso, como em quase tudo mais, sou individualista até debaixo d´água: cada um que tenha a vida que bem entenda.
Queria que você tentasse descobrir no meio de meus livros um com capa mole, meio velho – não, acho que é da Assembleia [Legislativa] – que já devolvi. É o Programa de Estabilização Monetária de 1958-1959, do Ministro Lucas Lopes, ao tempo do Juscelino. Acho que vou escrever sobre Planos de Estabilização mesmo. Preenche todos os requisitos que quero. É um tema operacional, explosivo e, espero, passível de análise “científica”. Estive conversando com o Guillermo Calvo, o argentino que também fica para o Ph.D., e chegamos à conclusão que o melhor é não “lotar” de cursos o ano que vem. Quero ver se eles autorizam a tomar apenas 3 cursos para crédito, para que eu possa auditar mais 2 (em preparação para as temíveis “finais”), e fazer leituras para dar uma forma ao que quero escrever.
01/06/1965: O Ranis parece que tem senso de humor diferente do meu; me deu um high-pass-plus que vai ser decididamente reclamado na 4ª. feira. Será que, naquela idade, ele ainda acredita em Economia? Estatística também foi igual, mas essa aí está legal, que reconheço que minha capacidade para máquina de calcular é danada de fraca.
10/06/1965: Quando cheguei hoje de Nova York, estava o telegrama de Londres [da Organização Internacional do Café] me esperando. Afinal, não vão pagar minha passagem, o que me faz dar adeus a carro no ano que vem – o jeito é apelar para a bicicleta…. Diz lá o telegrama: “Seu período treinamento aprovado dez semanas transporte pago por você. OIC responsável somente pelas diárias 18 libras por semana. Por favor comunique aceite”.
Balanço da experiência
26/05/1965 (carta para minha irmã): Este mês fui aceito no programa de doutorado. Não precisa espalhar não, mas dos sete economistas que a Fundação já mandou aqui para Yale seu maninho é o primeiro a conseguir isto com um ano de cursos (teve um outro [João Paulo dos Reis Velloso], que aliás não completou o doutorado, que ficou depois de um ano e meio de mestrado). Tinham outros 27 no curso mas o único outro que Yale aceitou este ano foi um argentino [Guillermo Calvo], uma fera em economia. [A Universidade também aceitou Clóvis Cavalcanti no doutorado, mas ele preferiu voltar para o Brasil]. Quanto ao fato de já ter sido aceito antes das provas finais não tiro onda, que isso foi devido mais à ruindade do resto do pessoal, que a meus méritos. Se fosse a turma do ano passado, por exemplo, isso não teria acontecido. Mas não se assuste que, principalmente para minha tranquilidade, ainda não virei gênio não. Um, estudei pra burro; dois, vim muito bem preparado e conhecendo os macetes; três, sou muito é vivo pra fazer prova; quatro, não tive problema de adaptação. Cinco e mais importante que tudo, isso para mim era “o” desafio, eu tinha que conseguir ficar. Acho que foi o fato de ter-me exigido tanto (que diabo, também tinha que viver, que 23 anos a gente só tem uma vez — quase que consegui…) e ter dado tudo de mim—é que me fez ficar gostando daqui. Enfim, ano que vem vai ser pior ainda, que os cursos de segundo ano são muito mais difíceis, vamos ver o bicho que dá.
1 Cf. E. Bacha, “Tocquevilleanas: Um estudante brasileiro nos EUA, 1964-65”, disponível em:
http://academia.org.br/artigos/tocquevilleanas-um-estudante-brasileiro-nos-eua-196465 ; e “Furtado em Yale: Relatos de um jovem admirador”, disponível em: http://www.academia.org.br/artigos/furtado-em-yale-relatos-de-um-jovem-admirador.
2 Antes de mim, ao que saiba o único brasileiro com Ph.D. em economia foi o diplomata Otavio Augusto Dias Carneiro que obteve o Ph.D. no MIT em 1952.
3 Relatório anual do Council of Economic Advisers do Presidente dos EUA.
4 Devo referir-me a: Elizabeth Judas, Rasputin: Neither devil nor saint, edição de 1o. janeiro 1965.
5 Trata-se da entrevista de Martin Luther King Jr à Playboy de janeiro de 1965.
6 Cf. Edmar L. Bacha, “Comparación entre la productividad industrial de México y los Estados Unidos”, El Trimestre Económico, 132, 33(4), out-dez 1966: 657-674.
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