Risco é alta do PIB virar ‘voo de galinha’ por falta de investimento


O resultado do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil no primeiro trimestre deste ano reforçou a visão da Vinci Partners de que há motores de crescimento que podem levar a atividade do país para uma alta entre 2,5% a 3% em 2024, uma avaliação que não mudou mesmo com a tragédia no Rio Grande do Sul, pelo contrário. Se, no entanto, o PIB continuar crescendo acima do seu potencial sem que haja aumento sustentado dos investimentos, o risco é ter mais um “voo de galinha” da economia e com riscos inflacionários, alerta José Carlos Carvalho, responsável pela área de macroeconomia.

“[Taxa de investimentos de] 16,7% do PIB ainda é pouco para o Brasil. Tem de ver até onde dá para ir com esse crescimento sem ter investimento”, afirma Carvalho.

Ontem, o IBGE divulgou que o PIB do país subiu 0,8% no primeiro trimestre de 2024, ante o quarto trimestre de 2023. “O segundo trimestre vai ser impactado negativamente, com um número mais fraco, achamos que pode ser 0,4%, algo assim. Mas, ao longo do ano, é bem provável que a reconstrução tenha um impacto mais positivo do que, de fato, teve de perda no segundo trimestre”, afirma Carvalho sobre a situação no Estado. 

Ao Valor ele afirma que é um engano achar que destruição de estoque de capital afeta o PIB. “PIB é valor adicionado no ano, coisas que são produzidas naquele ano. Quando um aeroporto ou um prédio são destruídos, isso não afeta o PIB. Mas a reconstrução, sim”, diz.

Como essas atividades podem ficar concentradas no segundo semestre deste ano, Carvalho afirma ver, inclusive, possibilidade de transbordamentos desse “esforço de demanda” na reconstrução da infraestrutura do Estado para a economia nacional em 2025. 

Veja a seguir os principais trechos da entrevista:

Valor: O resultado do PIB no primeiro trimestre de 2024 surpreendeu vocês de alguma maneira?

José Carlos Carvalho: Foi um número que não choca, não tem grande surpresa, tínhamos projeção entre 0,7% e 0,8%. O número mostra que os grandes motores de crescimento continuam aí.

Valor: Quais motores são esses?

Carvalho: Primeiro, vemos o mercado de trabalho bastante aquecido. O último número do desemprego, com ajuste sazonal, foi 7,2%, o que é perto dos valores mínimos da série. Como consequência, vemos salários subindo bastante, acima de 5% – e isso pode até ser um problema para a inflação. No Caged, que engloba só o pessoal com carteira de trabalho assinada, vemos que, em 12 meses, tem mais de 1,5 milhão de pessoas entrando no mercado de trabalho. Então, quando a gente olha a massa salarial, ela está crescendo, não só porque tem mais gente empregada, mas também porque os salários estão subindo. E há muitos setores que dependem dessa massa e que estão vindo bem. O comércio, por exemplo, teve alta de 3% no primeiro trimestre. Teve um outro fator, da parte fiscal ter sido feita antecipadamente.

Valor: Como assim? 

Carvalho: No último trimestre do ano passado e no primeiro trimestre deste ano, o gasto do governo foi alto, porque ele acelerou muito a execução do Orçamento. Ele não precisava pagar os precatórios, por exemplo, todos no primeiro trimestre [de 2024]. Acho que teve uma decisão política de fazer, porque havia muitos precatórios de baixo valor, o que bate no consumo. Com isso, o déficit primário foi rapidamente acima de 2% do PIB. Se o arcabouço fiscal for respeitado, eu acho que vai ser, esse número vai enfraquecer ao longo de 2024, e o déficit deve chegar perto de 0,5%, 0,6% do PIB. A parte fiscal bateu muito forte [na atividade] no primeiro trimestre e acho que vai ajudar no segundo, mas perde força ao longo do ano.

Valor: Efeitos pontuais como esse não significam que o crescimento deve desacelerar à frente?

Carvalho: Esse impulso fiscal é o principal motivo para o pessoal achar que desacelera no segundo semestre. Mas, por outro lado, eu acho que a parte do crédito está acelerando e ainda vai acelerar mais. Dentro do consumo, tem uma parte que depende mais de renda e uma que depende mais de crédito. Comprar um carro depende da sua renda no sentido de você ficar mais confortável para tomar dinheiro emprestado, mas depende de ter crédito. E, com essa queda de juros de 13,75% para 10,5% – e podemos discutir se vai além disso ou não -, já vimos o crédito expandindo bastante. Então, eu acho que, mais à frente, o consumo que depende mais de crédito, como de imóveis e carros, vai aumentar. Olhando o PIB do primeiro trimestre, a indústria de transformação, por exemplo, já melhorou. Nós temos um crescimento de PIB entre 2,5% e 3% de forma meio linear ao longo do ano.

Valor: Os reflexos econômicos da tragédia no Rio Grande do Sul não colocam um viés de baixa nessa projeção forte para o ano?

Carvalho: O segundo trimestre vai ser impactado negativamente, com um número mais fraco, achamos que pode ser 0,4%, algo assim. Mas, ao longo do ano, é bem provável que a reconstrução tenha um impacto mais positivo do que, de fato, teve de perda no segundo trimestre. Conversando com pessoas mais leigas, muita gente fica chocada que não revisamos para baixo por causa do Rio Grande do Sul. Um engano que as pessoas cometem, às vezes, é achar que a destruição de estoque de capital afeta o PIB. PIB é valor adicionado no ano, coisas que são produzidas naquele ano. Quando um aeroporto ou um prédio são destruídos, isso não afeta o PIB. Mas a reconstrução, sim. Já começamos a ver em bens recuperação, com os primeiros auxílios emergenciais liberados. A pessoa vai comprar material para reconstruir a casa, a geladeira que perdeu, sofá, cama, o governo vai reconstruir aeroporto. Tudo isso afeta o PIB. Hoje, há uma estimativa de que, considerando todas as fontes de financiamento, a recuperação do Estado pode somar R$ 100 bilhões, o que é aproximadamente 1% do PIB do Brasil e mais de 10% do PIB do Estado. Óbvio que, no PIB do segundo trimestre, vai ter algum impacto negativo, porque a produção parou. Mas nem todas as regiões foram afetadas, a parada de produção não é tão grande, a maior parte da colheita de soja não só já foi feita como também foi exportada. A estimativa de perda de safra na soja, por exemplo, é de 1 milhão de toneladas, o que parece muito, mas a produção de grãos no Brasil, neste ano, será de 295 milhões de toneladas. Então, algum impacto vai ter, mas, como eu disse, não vai ser tão grande.

Valor: Os efeitos de destruição e reconstrução serão compensados entre os trimestres? 

Carvalho: Eu acho que o “net” [saldo líquido] é positivo. Por isso que, apesar do Rio Grande do Sul, a gente continua no 2,5% a 3% [de PIB para o Brasil em 2024] e eu até acho que pode ter um pouquinho mais de “exagero” para cima, por causa dessas reconstruções. Tudo isso vai aumentar a construção civil e ter um impacto positivo.

Então, tem esse movimento mais para baixo no segundo trimestre por causa do Rio Grande do Sul – que, mesmo assim, não é suficiente para ser um PIB negativo – e, depois, devemos voltar a esse ritmo de 0,7%, 0,8% por trimestre. E, se tiver alguma surpresa, a gente tem de olhar um pouco essa questão da reconstrução, porque pode ser um impacto bastante significativo se, de fato isso, se concentrar no segundo semestre. 

Valor: O que quer dizer com isso? 

Carvalho: São coisas que não vão estar no Orçamento do ano que vem, mas, certamente, algumas despesas, como a reconstrução de uma estrada ou do aeroporto, parte desse esforço de demanda ainda vai acabar batendo no ano que vem. Os jornais dizem agora que o aeroporto, por exemplo, só vai reabrir em dezembro, e sempre falta alguma coisa.

Valor: O sr. citou a discussão sobre até onde a Selic pode ir. O que pode influenciar nisso?

Carvalho: Há fatores domésticos e internacionais. Um deles foi a mudança de percepção de que o Fed [Federal Reserve, banco central dos Estados Unidos] iria cortar os juros. O Fed disse que iria cortar três vezes em 0,25 ponto percentual. O mercado chegou a acreditar que seria até mais. Ao longo do mês passado, precificava que não haveria cortes este ano. Eu, particularmente, acho que isso vai melhorar ao longo do ano. O mercado já voltou a colocar uma queda. Eu acho que terão quedas de juros lá nos EUA, porque os números de inflação começaram a vir mais normais. Não são fracos, mas vieram mais normais. E alguns números de atividade também estão começando a normalizar, não que sejam fracos. Mas acho que o mercado vai mudar sua percepção, e isso ajuda o Brasil. 

Valor: E quais são fatores domésticos para a determinação da Selic?

Carvalho: Em teoria, o juro no Brasil não pode vir abaixo do juro neutro, porque você estimula demais a economia. A gente achava que o juro neutro era 4,5%, mas, provavelmente, já está um pouco acima disso, seja porque o juro lá fora não vai cair tanto quanto se imaginava antes, seja porque o governo aqui fez uma política fiscal muito agressiva. Voltando aos dados do PIB, uma preocupação que eu tenho é que, se o país cresce acima do PIB potencial, e o pessoal acha que 3% pode ser acima do potencial, e não tem investimento, vai ter um “voo da galinha” mais uma vez. Vai chegar uma hora em que não vai ter energia e mão de obra, elas vão subir muito de preço, vai começar a faltar produtos. E isso só se resolve de duas maneiras: ou você importa – e, para a mão de obra, nem importar é muito possível -, ou você tem inflação. Então, é preciso que o investimento fique alto. Até dois anos atrás, ele estava em 18%, 19% do PIB. 

Valor: O investimento subiu neste primeiro trimestre  

Carvalho: E eu acho que isso é uma novidade boa do número divulgado, o investimento subiu um pouquinho, a taxa foi para 16,7% do PIB. Pelo menos, começou a se movimentar na direção certa, mas o Brasil precisa investir 19%, 20% do PIB. Então, falando de restrição doméstica, se a gente quer reduzir os juros, o investimento tem de ser mais alto. Mas é o investimento em coisas produtivas, que vão gerar PIB no futuro. É a construção de uma fábrica que, durante três anos, “gasta” demanda, mas que no quarto ano produz PIB. Não é um investimento, como o pessoal falava antigamente, para “construir pirâmides”. Isso não gera nenhum PIB depois. Então, esse aumento do investimento observado agora foi positivo, mas ainda muito modesto; 16,7% do PIB ainda é pouco para o Brasil. Tem de ver até onde dá para ir com esse crescimento sem ter investimento.

Valor: Além de uma melhora nas condições financeiras, o que pode estimular os investimentos?

Carvalho: Eu acho que uma coisa que segurava a queda do investimento eram as privatizações e concessões. Aquele cronograma de leilões todo mês… Isso aí parou no último um ano e meio. A gente vê que o governo tem pouca capacidade de investimento, as despesas obrigatórias estão comendo grande parte do orçamento. Então, precisa delegar. O que puder ser feito pelo setor privado, acho que é uma coisa bem positiva. O governo tem, às vezes, a leitura de que é uma questão de financiamento, mas não acho que esse seja o principal problema. Nesse aspecto, o juro caiu, papéis das debêntures, debêntures incentivadas, de infraestrutura têm taxas bastante baixas. O prêmio de risco do papel privado em relação ao do Tesouro está bem pequeno. O custo, o financiamento, isso nem parece ser o problema. O problema parece ser mais de autorizar o setor privado e dar oportunidades para ele tomar o espaço no que o Estado não está conseguindo fazer. Acho que isso seria um passo importante para a retomada do investimento.