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Se os 10% mais ricos do país não descontassem seus gastos com saúde e educação do Imposto de Renda, talvez se preocupassem mais com a qualidade do serviço público brasileiro, diz o economista e ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga.
Sócio da gestora de investimentos Gávea, ele tem nos últimos anos se dedicado a estudar questões sociais, principalmente as ligadas à desigualdade de renda no Brasil.
Neste ano, coordenou a elaboração de duas propostas de reforma estrutural (administrativa e previdenciária) e fundou um centro de estudos de políticas públicas, o Ieps, que deve divulgar nas próximas semanas sua primeira pesquisa.
Para Armínio, investimentos sociais podem reforçar a democracia, que vem sendo atingida “no conteúdo e na forma”, segundo ele. “Se melhora a educação, as pessoas fazem escolhas políticas com mais segurança”, exemplifica.
Por que criar um centro de estudos e por que em saúde?
A decisão foi na ordem inversa. A saúde não gerou no terceiro setor o mesmo grau de interesse que a educação, no desenho e eficiência do sistema e nos aspectos de desigualdade.
Vir de família de médicos influenciou?
Tem tudo a ver. Cresci numa família de médicos, todos envolvidos em universidade e hospitais públicos. Cheguei a pensar em ser médico. Saúde é um assunto que tem muito potencial.
É raciocínio de investidor: o retorno do tempo aplicado virá mais rápido?
[risos] O retorno marginal nessa área parece ser alto. Isso com certeza influenciou minha decisão.
Na educação, apesar da atuação do terceiro setor, estamos longe do ideal. Como chegar a política pública efetiva?
Na educação, falta muito, mas avançamos. O terceiro setor só alimenta os governos, e tivemos problemas, de viés ideológico a incapacidade na gestão. Há ideias ultrapassadas, interesses enraizados, séculos de um modelo extrativista, que nunca deu atenção a educação, saúde, produtividade. Há dificuldades, mas acredito no poder de ideias amparadas por evidências. Há um elemento da economia política também importante.
Tornar obrigatórias avaliações de impacto é uma forma de garantir que conhecimento vire política duradoura?
A cultura de avaliar é crucial, e não pegou ainda. Na saúde, há uma base gigante de dados do SUS, que precisa ser complementada com a do setor privado. Não acredito que há solução só com o Estado, tampouco só com o setor privado, principalmente na saúde.
O programa Mais Médicos teve impactos comprovados, mas foi desmontado. Adianta estudar, implantar, comprovar resultado, se um governo desfaz o que o anterior fez?
Adianta, porque o desmonte vai ter consequências, e de 4 em 4 anos teremos a chance de demitir os nossos governantes, se assim decidimos
coletivamente. Se estudarmos e avaliarmos, o eleitor poderá tomar a decisão informado.
O sr. disse recentemente em entrevista a O Globo que houve retrocesso na democracia e que, apesar do voto, há populismo autoritário. Isso não joga contra essa revisão a cada quatro anos?
Investimentos sociais podem reforçar as instituições democráticas. Se melhora a educação, as pessoas fazem escolhas políticas com mais segurança. No caso do Brasil, as ameaças vêm se concretizando, e são ameaças não só no conteúdo como também na forma.
Que ameaças?
Ameaças à democracia, aos valores universais em geral. Análises têm sido feitas pelos nossos melhores cientistas políticos, sociólogos, e o dano existe. Só não vê quem não quer.
O que o senhor chama de forma?
Uma sociedade civilizada pretende analisar as questões a partir de fatos, de uma discussão sóbria, aberta. Os sinais são todos de que isso piorou. Há uma cultura de intimidação, de hiperagressividade nas redes.
A declaração do vereador Carlos Bolsonaro de que “por vias democráticas as coisas não mudam rapidamente” é parte disso?
Uma coisa é a suspeita de como as pessoas pensam, outra muito mais grave é ela ser dita de forma clara e contundente. Todos os países que atingiram qualidade de vida de forma ampla, não apenas consumista, são democracias abertas, liberais, com preocupações sociais.
Dá para debater política pública num momento de tanta polarização?
A polarização como estratégia já está dando sinais de que não deu certo. Existe uma massa crítica meio espalhada, espero que com o tempo se reorganize. Divergências acabaram beneficiando os extremismos. O centro não pode repetir esse erro.
E mesmo economistas mais liberais já admitem incorporar a política social na formulação de políticas econômicas.
Num sistema universal e gratuito, não é esperado que a demanda acabe sendo equilibrada com filas e perda de qualidade?
Sim. Mas houve uma decisão da sociedade de cuidar dos seus mais pobres, dos que têm mais dificuldade em se defender. Já na largada, o sistema de saúde é de distribuição, onde os que mais podem contribuem para o bem estar dos que menos podem. Esse é um ponto fundamental. O financiamento é essencial para cuidar dos mais pobres.
Mesmo nos países mais avançados, há algum tipo de racionamento; certos tipos de doença não recebem tratamentos caríssimos e até experimentais. No Brasil há problemas como a judicialização [em que o Estado é obrigado a bancar remédios caros] e o desenho dos planos de saúde. São temas dificílimos, mas é melhor encarar que ter o racionamento através de filas.
O abatimento das despesas de saúde no IR não distorce a lógica de mais ricos bancando os mais pobres?
Exato. No Brasil, a tributação é muito horizontal, e chega ser regressiva [mais ricos pagam proporcionalmente menos tributo] com a possibilidade de deduzir despesas com educação e saúde. Precisamos discutir a questão do financiamento.
O que chamamos de classe média, na verdade os 10% mais ricos, ou até 5% mais ricos, tem sofrido uma pressão sobre seu padrão de vida no mundo todo, e se ressente de qualquer discussão que possa atingi-la. Mas há pressão também dos que entram na fila do serviço público, não são atendidos, morrem no corredor.
A classe média deveria ceder?
É bom que o país tenha uma classe média. O objetivo em última instância seria termos uma classe média enorme, próspera, confortável e segura. Mas, se a dedutibilidade não existisse, possivelmente essas pessoas estariam muito mais interessadas no SUS e a discussão política tivesse avançado mais.
Os problemas de transição são terríveis para os que de repente se veem incapazes de comprar um plano de saúde com o qual estão acostumados. Mas nossa distribuição de renda extremamente desigual é uma questão que hoje grita que tem que ser tratada em paralelo à do crescimento.
Há privilégios incompreensíveis. Qualquer proposta que não ponha no topo da lista eliminá-los está envenenada. Há nuances, como o grau da rede de proteção social, o quanto que se gasta em cada setor, mas o princípio geral é esse.
Houve no Brasil um crescimento de empresas de consulta médica barata. É um problema ou uma solução?
Pode ser parte de uma solução, mas num desenho de saúde pública que analise o contexto. Há uma tensão entre os adeptos do modelo europeu [de responsabilidade do Estado] e o grupo impaciente com a dificuldade de execução do setor público, que busca soluções privadas.
O quanto é possível delegar ao setor privado? Na saúde pode haver complementaridade, mas há aspectos que vão além da eficiência. Equidade sobretudo. A saúde no Brasil é claramente carente de recursos, há disputa por fatias do orçamento e um esforço constante para pagar menos, do tipo “já comprei meu plano de saúde; não quero pagar imposto”. Vai se criando o sistema cada vez mais segmentado, que deveríamos evitar.
Faltam recursos ou falta eficiência?
É preciso separar. Há espaço para melhoria de gestão, mas isso não vai resolver todas as carências.
O instituto que você fundou fala em promover cultura de saúde. O que é isso?
Um exemplo seria obter no mundo da alimentação o mesmo resultado obtido com o tabagismo. Não é suficiente desenhar as melhores leis para construir uma sociedade boa. Há instituições informais que afetam o comportamento das pessoas, e precisam ser objeto de atenção do Estado.
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