Shakespeare e o golpe (nos EUA)


Compreende-se a moderação dos americanos (estado-unidenses, como se fala no léxico contemporâneo) diante dos horrendos eventos de 6/1/21: é embaraçoso admitir que havia um golpe em andamento. Parece preferível tratar o assunto como uma manifestação, uma dessas que brota espontânea, como as provocadas pelos episódios de violência policial, das quais alguns excessos são relevados, mas era muito mais que isso.

É constrangedor reconhecer, ademais, como é comum em eventos desse tipo, que alguns dos atores no enredo perderam o controle e entornaram o caldo pondo tudo a perder. Na longa história das repúblicas bananeiras, para onde a academia deve dirigir sua atenção, há mais golpes fracassados por trapalhadas de seus participantes do que certeiros. A falta de prática dos americanos quanto a coisas desse tipo em seu território pode estar lhes toldando a percepção.

Um golpe bem sucedido requer muito planejamento, uma tese, diversos apoios e uma circunstância. E sempre se apresenta como “contragolpe”, a parte essencial da narrativa, que permite a manipulação da opinião pública, personagem decisivo nesses episódios.

Esta sabedoria não vem propriamente de repúblicas bananeiras, mas de Shakespeare, e do conhecidíssimo enredo de Júlio César em especial. Os conspiradores que mataram César agiam por princípios, com vistas a salvar a democracia de um tirano, ou estavam, eles mesmos, executando um golpe que destruiria a democracia?

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Ao ver-se instado a dissuadir os invasores do Capitólio, Trump pareceu usar a estrutura retórica de Antônio, em seu famoso discurso, diante do cadáver de César, que terminou provocando uma guerra civil. Os conspiradores, na peça, imprudentemente deixaram que Antônio falasse à multidão, e seu talento foi o de “justificar” a conspiração, como queriam os conspiradores, mas de um jeito que a multidão firmou a convicção de que não havia justificativa alguma. Um primor.

Em sua breve fala aos invasores do Capitólio, Trump insistiu na fraude eleitoral, mas repetiu que em nome da lei e da ordem, era preciso que todos fossem para casa, como Antônio, ao responder que Brutus era um homem honrado, várias vezes, diante de cada uma das dúvidas sobre o assassinato de César. Trump parecia instigar a multidão, ao invés de acalmá-la, um estratagema que fez crescer a ideia de aplicar a 25ª Emenda, ou forçar sua renúncia, para antecipar em duas semanas o seu afastamento da Presidência.

Nunca vamos saber se Trump ou seus ghostwriters estavam mesmo evocando Antônio. Não é o estilo habitual, mas independentemente de ter havido a intenção, esse pequeno plágio pode ser lido como uma curiosa vendetta contra o bardo, a propósito da controvérsia gerada pela montagem de Julius César no programa Shakespeare in the Park no verão de 2017, o primeiro depois que Trump foi eleito.

Segundo um relato magnífico dessa controvérsia no recém publicado livro de James Shapiro “Shakespeare in Divided America”, o diretor Oskar Eustis pretendia exatamente tensionar a dúvida sobre as supostas aspirações tirânicas de César e dos perigos que cercam a presença, na política, de certezas contraditórias. Eis o que ele mesmo disse, em sua fala ao público, antes de a encenação começar:

“Essa peça… adverte sobre o que acontece quando se tenta preservar a democracia por meios não democráticos. E (alerta de spoiler) não termina nada bem. … [Trata-se de] o perigo de muitas pessoas, manipuladas em suas emoções, arrebatadas por líderes que as impelem a fazer coisas que não apenas contrariam seus interesses como também destroem as mesmas instituições que existem para servi-los e protegê-los.”

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Mas, como fica muito claro na peça, segundo outro shakespeariano liberal, Stephen Greenblat, “ações baseadas em ideais nobres, no mundo real, podem ter imprevisíveis e irônicas consequências”. Eustis jamais poderia imaginar o tamanho da reação e a extensão das forças que iam responder a seu apelo por um “debate”, ao caracterizar César como Trump.

Alavancados por redes sociais sem controle, e por fake news — como “Trump apunhalado até a morte no Central Park”, depois corrigidas para “Trump”, entre aspas, “assassinado por senadores em encenação de Júlio César no Central Park” — o pequeno teatro ao ar livre, diversão pacata de nova-iorquinos amantes do bardo, se tornou uma guerra.

No palco, depois do brutal assassinato de César, caracterizado como Trump, em cores fortes (cena capturada por 12 segundos numa gravação ilegal por celular, de alguém na plateia, e que foi parar no YouTube em seguida, com imensa repercussão), Brutus (Corey Stoll) e Anônio (Elizabeth Marvel), ambos atores com papéis relevantes em House of Cards, dirigem-se à multidão. Ambos buscam tomar a temperatura e influir sobre a “opinião pública”.

O diretor, todavia, havia misturado figurantes e atores no público para gritar palavras de ordem durante os discursos de Brutus e Antônio, o que estava longe de ser uma grande novidade em montagens de Júlio César. Porém, esse truque provocou uma espécie de pânico quando manifestantes de verdade tentaram interromper a peça exatamente nesse momento, uma extraordinária peça dentro da peça.

A segurança afasta os manifestantes, e eis o que se passa a seguir, conforme o relato de James Shapiro:

“Apenas um minuto ou dois se passaram, e os atores mantiveram-se imóveis, inseguros sobre o que fazer. Uma voz calma e familiar foi então ouvida pelo sistema de som do teatro, era Buzz Cohen, a diretora de palco, que vinha ocupando essa função há décadas: os atores devem continuar a partir de ‘freedom and liberty’? [que tinham sido as últimas palavras do personagem Casca, diante do cadáver ensanguentado de César]. Era o tipo de orientação que os atores ouviram dela centenas de vezes durante o longo período de ensaios à qual respondiam de forma quase que reflexa. O efeito sobre todos os presentes foi eletrizante. A audiência se pôs de pé em uníssono e aplaudiu. Eu nunca experimentei algo assim em um teatro.”

Nada poderia melhor provar o ponto do diretor, Oskar Eustis, na sua fala introdutória ao espetáculo: defender a democracia por meios não democráticos, sobretudo com violência, é o mesmo que a destruir. A democracia vive e morre da convivência e conflito de diferentes pontos de vista, não há donos da verdade, e todos somos donos da cultura.