Casa das Garças

Sociedade não aceita uma nova aventura ditatorial

Data: 

09/08/2021

Autor: 

Edmar Bacha

Veículo: 

Valor Econômico

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Um dos pais do Plano Real, o economista Edmar Bacha assina um manifesto organizado por banqueiros, empresários e intelectuais na defesa do processo eleitoral, divulgado na semana passada em resposta aos ataques do presidente Jair Bolsonaro. “A sociedade civil não está disposta a uma nova aventura ditatorial”, afirma, em entrevista ao Valor.

 

Para ele, “a questão número um para os investimentos é a estabilidade”, por isso os mercados reagiram com a forte queda à crise institucional em Brasília. “Em 1963, o país estava numa situação talvez mais trágica do que essa. A economia desabou e a inflação se acelerou. É para evitar entrarmos nesse clima que é preciso fazer com que o presidente Bolsonaro respeite as regras.”

 

O ritmo das reformas está precário e os problemas estão se agravando. Veja o custo para privatizar a Eletrobras”

 

Bacha diz que a Faria Lima se arrependeu de ter apoiado Bolsonaro nas eleições de 2018. “Acho que ninguém que votou no Bolsonaro, que não foi meu caso, esperava que levasse o governo a esse ponto, de ameaça às instituições democráticas.”

Também há uma decepção, sustenta, com o andamento da agenda de reformas liberais liderada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. “O ritmo de entrega está precário e parece que os problemas estão se agravando. Veja o custo para privatizar a Eletrobras, com todas as concessões que o Centrão exigiu.”

 

Bacha critica Guedes por condicionar a abertura externa da economia brasileira à superação do custo Brasil. “É um equívoco conceitual”, diz. “Esses custos são compensados por uma taxa de câmbio mais desvalorizada.” Ex-presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) [1985-1986, governo Sarney], ele rebate as críticas de Guedes ao órgão. “Nada justificaria essa atitude estouvada do ministro.”

 

Nada justificaria essa atitude estouvada de Guedes contra o IBGE, uma das instituições mais prezadas do governo”

 

O economista, que dirige o “think tank” Casa das Garças e presidiu o BNDES [1995, governo Fernando Henrique], diz que é cedo para discutir a escolha entre Lula e Bolsonaro se a eleição de 2022 se afunilar entre os dois polos. “Temos que cruzar esse rubicão quando chegarmos a ele. Enquanto isso, o que temos que fazer é trabalhar para a construção de uma alternativa melhor.”

 

A seguir, os principais trechos da entrevista:

 

Valor: Por que o senhor assinou o manifesto pelo respeito às eleições?

 

Bacha: Como os demais signatários, estou levando a sério as ameaças que o presidente tem feito em relação à não realização das eleições de 2022, se não for nos termos em que ele especifica. Termos esses que não cabem a ele decidir, mas sim ao Congresso.

 

Valor: Há uma ameaça real ao processo eleitoral ou só bravatas?

 

Bacha: Já vimos a que ponto isso pode ser levado nos Estados Unidos, que é uma democracia muito mais madura do que a nossa, com a tentativa de subversão armada pelo ex-presidente [Donald] Trump dos resultados legítimos eleitorais. Como vemos muita semelhança na atuação do Bolsonaro, temos que levar a sério. Nos Estados Unidos, aparentemente, os militares estavam preparados para enfrentar o Trump se ele tivesse êxito naquela invasão do Capitólio. Aqui, não sabemos. Infelizmente, os militares têm se comportado de uma maneira relativamente dúbia. É preciso deixar bastante claro que a sociedade civil não está disposta a uma nova aventura ditatorial.

 

Valor: Como o senhor avalia o papel do Judiciário e Legislativo na crise?

 

Bacha: O Judiciário está atuando perfeitamente bem, tanto o Supremo Tribunal Federal (STF) quanto o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Estão no papel deles, em defesa das instituições, da legalidade, do processo eleitoral legítimo. O Congresso até agora não se manifestou. É a ele que cabe fazer a votação sobre a maneira que as eleições vão se dar. Se vamos realmente ter o voto impresso, como o presidente está sugerindo, o que seria um retrocesso. Já vimos, no tempo do voto impresso, quantas fraudes houve, em comparação com nenhuma reclamação com as máquinas. Acho que seria urgente o Congresso apressar essa votação. Finalizar essa questão para que o presidente não tenha, dado o caráter golpista de sua atitude, como apelar para algum grau de possível legalidade.

 

Valor: Por que o mercado reagiu de forma tão negativa à crise institucional na semana passada, com alta do dólar e dos juros?

 

Bacha: Foi a primeira vez que Bolsonaro falou que, se a Constituição não for do lado dele, irá contra Constituição. Ele anunciou que está disposto a tentar dar o golpe. É o presidente da República falando. Isso é de uma gravidade extraordinária. Inclusive acho que é um crime de responsabilidade pelo qual deveria sofrer impeachment.

 

Valor: Essa crise institucional pesa para quem decide fazer investimentos no Brasil? Tivemos uma ditadura, mas naquela época a economia seguiu. Algo mudou?

 

Bacha: A questão número um para os investimentos é a estabilidade. Você pode dizer que, no período ditatorial, tinha uma estabilidade. Era uma estabilidade imposta, mas não era contestada. Então, desde que a política econômica favorecesse os investidores, os investidores estavam preocupados fundamentalmente em ganhar dinheiro. Dito isso, existe uma grande mudança de atitude do conjunto dos investidores, não de cada investidor tomado individualmente. Como coletividade, há uma preocupação com as questões da equidade, da democracia e sustentabilidade, que são fatores novos que entram no conjunto do processo decisório de investimento.

 

Valor: O presidente Bolsonaro foi eleito com apoio da Faria Lima. Houve um arrependimento?

 

Bacha: Com certeza. Acho que ninguém que votou no Bolsonaro, o que não foi o meu caso, esperava que ele levasse o governo a esse ponto, de ameaça às instituições democráticas. Aqui estamos falando de valores mais fundamentais que se colocaram em jogo, que, do ponto de vista das eleições de 2018, não pareciam estar em causa.

 

Valor: A aposta da Faria Lima foi de que Bolsonaro e Guedes pudessem avançar uma agenda reformista liberal. Houve progressos?

 

Bacha: É uma questão complicada, porque teve uma intervenção externa, que ninguém contava, que é a pandemia. Tudo pode ser jogado na conta da pandemia, dizer que a pandemia impediu que o projeto se realizasse. Creio que, com pandemia ou não, há uma certa decepção também com o andamento da agenda liberal.

 

Valor: Em que aspectos?

 

Bacha: O problema da economia brasileira são dois: o setor público inchado, incapaz de entregar serviços públicos e de investir em infraestrutura econômica e social, por causa dessa pressão de gastos correntes. E com um esquema de arrecadação que é também altamente desvirtuador da atividade econômica. Esse é um problema. Temos também um setor privado que é altamente improdutivo, e a razão fundamental é o fechamento da economia. Todos os países que romperam com a armadilha da renda média e conseguiram se tornar ricos depois da Segunda Guerra, todos eles sem exceção, fizeram com abertura ao comércio exterior. O Brasil se mantém fundamentalmente fechado. E nesse ponto o ministro Paulo Guedes tem uma atitude muito decepcionante.

 

Valor: Por quê?

 

Bacha: Na medida em que ele condiciona a abertura da economia à superação do custo Brasil. É um equívoco conceitual fundamental, porque não é pelo fato de termos custos mais elevados que vai impedir que participemos no comércio. Esses custos são compensados por uma taxa de câmbio mais desvalorizada. O que ocorre com o custo Brasil é que, para concorrermos no exterior, a taxa de câmbio tem que ser desvalorizada, o que é ruim. Melhor que não tivéssemos esse custo para termos um real mais forte, o que implicaria um nível de bem estar maior para a população. Enquanto esses custos existirem, não tem jeito. A única maneira de equilibrar as nossas contas é tendo uma taxa de câmbio desvalorizada. Mas já estamos com uma taxa de câmbio muito desvalorizada, então esse custo está sendo compensado. Isso não é uma justificativa para não abrir a economia. Inclusive a abertura da economia seria um indutor de outras reformas. Você aliaria o setor privado de uma maneira muito mais forte aos esforços reformistas do governo. Tudo o que dá certo no Brasil é porque estamos competindo internacionalmente. Veja agora na Olimpíada. Por que nossos skatistas, remadores, surfistas fazem tanto sucesso? Todos eles estão participando da atividade internacional, competindo internacionalmente. É isso que os faz tão bons, usando os recursos que o Brasil tem para oferecer.

 

Valor: Mas não tivemos avanços, como no caso da reforma da Previdência e das privatizações da Eletrobras e dos Correios?

 

Bacha: O ritmo de entrega está precário e, além disso, na margem, parece que os problemas estão se agravando. Veja o custo que teve para privatizar a Eletrobras. Quase que a gente teve que pagar para privatizar, com todas as concessões que o Centrão exigiu extrair para poder concordar com a capitalização da empresa. E a questão da concorrência? Não se resolveu. O problema não se resolve só com a capitalização da Eletrobras. Temos que pensar nas condições de concorrência futura. Ela vai ser dominante do mercado, vai ter um monopólio privado? Isso não queremos, também. Precisamos ter um sistema de regulação que garanta concorrência. Isso também não ocorreu. Agora, pega toda essa confusão com a reforma tributária. Essa fixação do Guedes com a CPMF. Não deixa a agenda tributária avançar. Não conseguiu fazer avançar a reforma da tributação indireta e, de repente, manda um projeto de reforma do imposto de renda que todos os analistas responsáveis dizem que, se for isso, melhor não fazer.

 

Valor: O ministro Guedes tem afirmado que os próprios brasileiros difamam o Brasil no exterior, em temas como meio ambiente e valores democráticos, e isso atrapalha na atração dos investimentos e nos acordos internacionais.

 

Bacha: Acho que ele está totalmente equivocado, porque a evidência é clara de que o presidente não está comprometido nem com a agenda democrática nem com agenda liberal. Ele é um corporativista. Sempre foi. Apoiou o Guedes não por convicção, mas porque isso pareceu conveniente para ele do ponto de vista de obter apoio da elite empresarial.

 

Valor: A associação do presidente Bolsonaro com o Centrão garante base política para avançar a agenda de reformas?

 

Bacha: À frente desse processo, fundamentalmente tivemos dois partidos, o PSDB e o DEM. Foram esses agentes que foram indutores do processo de reformas, junto com o PMDB [hoje MDB]. O Centrão sempre foi uma linha auxiliar, Maria vai com as outras. Não existe no Centrão uma agenda, digamos assim, reformista. O propósito do Centrão é basicamente fisiológico. Então é duvidoso que, com o Centrão assumindo esse papel de suposto coordenador, vamos conseguir fazer a agenda de reformas sem as distorções e custos que estamos vendo acontecer no caso da reforma tributária, por exemplo.

 

Valor: O senhor vê alguma alternativa ao cenário de eleições polarizadas no ano que vem?

 

Bacha: Quem está preocupado com o avanço do país deve estar, como eu, envolvido na busca de uma melhor via do que essa que nos oferece Bolsonaro de um lado e Lula de outro. Esses filmes já vimos, e são ruins.

 

Valor: Mas quem apoiar numa situação entre Bolsonaro e Lula?

 

Bacha: Temos que cruzar esse rubicão quando chegarmos a ele. Enquanto isso, o que temos que fazer é trabalhar para a construção de uma alternativa melhor.

Valor: O senhor esteve envolvido na construção a candidatura do Luciano Huck, que não foi adiante. Qual é a alternativa?

 

Bacha: Na verdade, eu não estive envolvido diretamente com o Luciano Huck. Eu ainda continuo sendo membro do PSDB. Portanto, estou acompanhando com muito interesse as primárias. Estou achando muito importante essas primárias porque, se vamos encontrar um Biden, há que ter primárias para poder chegar a um candidato unificado. Vamos ver quem ganha e depois vamos tratar de unificar esforços com os demais partidos.

 

Valor: O sr. apoia alguém?

 

Bacha: Os quatro candidatos são excelentes, qualquer um que ganhar terá meu apoio.

 

Valor: Muitos acreditam que o ex-presidente Lula deverá moderar o discurso econômico.

 

Bacha: Até agora, por todas as declarações que ele tem dado, não. Inclusive é contra a abertura da economia, contra o teto de gastos, todas as declarações recentes são retrógradas. Toda a assessoria da qual ele se cerca é retrógrada, antirreformista, uma assessoria do atraso. Parece que eles não aprenderam nada.

 

Valor: Como o senhor vê as críticas do ministro Guedes sobre as estatísticas do desemprego do IBGE?

 

Bacha: É mais um dos absurdos desse ministro boquirroto, que está irritado com a questão que tem que enfrentar por fruto da pandemia. Ele fica querendo escolher os números que são melhores para ele. Sabemos que tem uma dúvida muito grande com essa mudança do Caged, que são os números que ele tem citado. O Caged sofreu uma modificação muito fundamental na metodologia, ninguém entende direito o que está medindo. Não tem nenhuma depuração estatística. Ao contrário, nos números do IBGE sabemos exatamente qual é metodologia, que é aplicada ao longo do tempo. Tem um problema conjuntural, que é a necessidade de fazer a apuração não presencial, mas por via de telefone. O IBGE teve essa dificuldade porque o STF, nesse caso, validou uma regra que eu acho totalmente absurda de não permitir ao IBGE o acesso as listas telefônicas. O IBGE está com dificuldades conjunturais para fazer uma medição mais precisa. Mas sabemos, no caso do IBGE, que é possível recalcular os dados de uma maneira científica. A equipe de economia do Itaú fez isso e encontrou uma margem de erro mínima. Nada justificaria essa atitude estouvada do ministro de ir contra uma das instituições mais prezadas do nosso governo.

 

Valor: Com a vacinação, os analistas reviram projeções de crescimento para mais de 5% neste ano. Essa retomada vai se sustentar?

 

Bacha: Sustentada, ninguém pode garantir. Estamos fazendo uma recuperação do que foi perdido. Se vamos, daqui para frente, ter uma taxa de crescimento mais elevada, depois que atingirmos os limites da economia, isso não está nada claro. O Brasil está sendo ajudado por uma onda econômica internacional muito favorável, com os Estados Unidos e a China se recuperando muito fortemente. Sabemos que as restrições que existem, no momento, são de oferta. Em parte por causa da não vacinação e em parte porque houve uma interrupção de suprimentos, as cadeias internacionais não estão conseguindo retomar na velocidade em que a demanda aumenta. Tanto que o problema hoje não é de falta de demanda. O problema hoje é de dificuldade de oferta, como nós vemos, por exemplo, no caso dos automóveis no Brasil e no mundo todo, com a falta de componentes. Na medida em que você vai resolvendo esses problemas com a vacinação e com a recomposição da oferta, a economia deve realmente ter uma retomada mais forte do que o mercado estava esperando anteriormente. Agora, se daqui para frente vamos ter crescimento acelerado, isso vai depender de duas coisas: investimento e tecnologia. Para essa duas coisas, temos que estar preparados em termos, primeiro, de estabilidade fiscal e, segundo, de abertura da economia. E nada disso está garantido para o futuro.

 

Valor: Tivemos um avanço da inflação, isso preocupa?

 

Bacha: A questão fundamental da inflação é termos uma perspectiva fiscal de longo prazo que garanta uma estabilidade do crescimento da dívida. Tendo isso, o trabalho do Banco Central fica facilitado, é uma questão mais de manejo conjuntural. Teve esses problemas de oferta inesperados na dimensão que estão acontecendo e teve uma recuperação da demanda mais forte também do que a gente estava antecipando, inclusive por causa da economia internacional mais pujante. Então, tem um desequilíbrio temporário entre a oferta e a procura que o BC tem que resolver no curto prazo.

 

Valor: O teto de gastos não garante a estabilização e queda da dívida no médio e longo prazos?

 

Bacha: A questão que precisamos avaliar é se essas regras vão se manter. A pressão é enorme. Não há nada assegurado. Ainda mais com essa dificuldade institucional, que cria um conflito terrível. Em 1963, o país estava numa situação talvez mais trágica do que essa. Também tinha um presidente que estava planejando um estado de sítio, o João Goulart, e os militares do outro lado também planejando o golpe. Tínhamos uma situação em que, nesse clima de instabilidade, a economia desabou e a inflação se acelerou. Acho que é para evitar entrarmos nesse clima que é preciso fazer com que o presidente Bolsonaro respeite as regras institucionais para não termos uma repetição daquela situação desastrosa.

 

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