Somos a matéria de que são feitos os sonhos


“Sonhei o sonho errado” escreveu Fernando Gabeira, então deputado federal eleito pelo PT, numa passagem do sereno discurso com que anunciou sua desfiliação do partido, no plenário da Câmara dos Deputados. Foi em outro outubro, 20 anos atrás.

A expressão teve chamada de primeira página nos principais jornais do País, que registraram a primeira explicação que deu Gabeira sobre o sonho errado: “Confiei que poderíamos fazer tudo aquilo que prometíamos rapidamente, num período de quatro anos ou imediatamente”. O que escreveu a seguir não mereceu tanta atenção: “Mas este sonho foi pior ainda: foi confiar que era possível transformar o Brasil a partir do Estado; foi não compreender que o Estado já perdeu o dinamismo, o qual agora se encontra na sociedade”.

Dois livros e um discurso foi o título do artigo que publiquei neste espaço em 9/11/2003. O discurso em questão era o de Gabeira; os livros, O Elogio da Serenidade, de Norberto Bobbio, e Insultos Impressos, de Isabel Lustosa. O primeiro é uma bela defesa dessa virtude tida como não muito política – “virtude fraca, mas não dos fracos”, no dizer de Bobbio. O segundo revisita os primeiros momentos de nossa imprensa, quando a “democratização do prelo” levou a surpreendentes níveis de violência o debate na forma impressa.

Naquele artigo de novembro de 2003 referi-me ao falso dilema subjacente ao discurso de Gabeira: “Estamos chegando ao final do primeiro ano do governo Lula. O aprendizado da sociedade tem sido extraordinário. Não menor tem sido o aprendizado do governo. Se conseguirmos, como parte desse processo de melhoria de qualidade do debate público informado, reduzir o peso relativo dos insultos impressos (em favor do conteúdo da discussão), valorizar mais a serenidade e a prudência-com-propósito como virtudes políticas e aprofundar a discussão sobre sonhar sonhos errados e sobre sua realização no mundo real ‘a partir do Estado’ ou ‘a partir da sociedade’ (um falso dilema), estaríamos contribuindo para continuar mudando, para melhor, um país difícil como o nosso. Ou, pelo menos, sonhando um sonho certo, o que inclui não ter ilusões sobre as dificuldades em realizá-lo”.

Falso o dilema porque é preciso tentar combinar o dinamismo de ambos, Estado e sociedade. Isso exige uma percepção de que não há que tentar fazer tudo “em quatro anos”, mas sim ter visão estratégica de longo prazo, consistente e comunicável, com clara definição de prioridades e avaliação dos inevitáveis trade-offs envolvidos, pensando nas próximas gerações, e não apenas nas próximas eleições.

O governo FHC definiu em 1998, no programa Avança Brasil, sua visão sobre o papel essencial do Estado: “O novo modelo, ao contrário do que alguns querem fazer crer, exige um Estado atuante e vigoroso. Por isso, o grande desafio contido no objetivo de promover o crescimento econômico sustentado, a geração de empregos e de oportunidades de renda consiste em recompor a capacidade estatal de formular políticas, construir estratégias e exercer suas novas atividades regulatórias, especialmente em relação às atividades transferidas para o setor privado. (…) não é mais possível desenvolver a economia no chamado regime autárquico, ou seja, isolada da competição e da convivência com produtos, tecnologias e capitais internacionais”.

Sigo julgando que deveria ser possível encontrar ampla convergência em torno dessa visão, evitando debates estéreis sobre o papel do Estado.

Três fenômenos, todos incompatíveis com um republicano Estado Democrático de Direito, maculam nosso passado: o messianismo salvacionista, o voluntarismo explícito e o autoritarismo exercido em nome do povo. Traços desses fenômenos seguirão vivos entre nós enquanto a sociedade – que é dinâmica, complexa, heterogênea e desigual – julgar que somente a partir do aparelho do Estado é possível realizar “grandes coisas” (Maquiavel) como, por exemplo, o desenvolvimento econômico e social sustentado.

O Brasil de hoje ostenta permanentes excessos de violência verbal, agora nas redes sociais, cada vez mais determinantes na luta política e social. Carece, em contraste, da virtude da serenidade – no debate político e social, por vezes no econômico. Uma democracia moderna precisa, tanto na sociedade quanto no governo, de serenidade para enfrentar seus inúmeros desafios. Trata-se de uma postura, uma atitude em relação aos outros e às coisas – aí incluídas as que se deseja transformar.

Sem usar a palavra serenidade, Bobbio certa vez definiu o que chamou de maior lição da sua vida: “Respeitar as ideias alheias, deter-se diante do segredo de cada consciência, compreender antes de discutir, discutir antes de condenar. E rejeitar todo tipo de fanatismo”. Sábia lição para países como o nosso, e muitos outros no mundo de hoje, que correm o risco de se enredar numa pobre e calcificada polarização política. Como se o Brasil, país de enormes complexidades – e não menores potencialidades – pudesse se dar ao luxo de incorrer numa enganosa e estéril escolha binária entre um lulopetismo e um antilulopetismo. Um desavisado nós contra eles. O Brasil – e seu povo – não merecem essa simplória e excludente redução.