Casa das Garças

Teoria, prática e bom senso

Data: 

27/01/2017

Autor: 

André Lara Resende

Veículo: 

Valor Econômico

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Ao escrever sobre a alta taxa de juros no Brasil, em artigo para o Valor, eu tinha consciência de que a iniciativa era complexa e potencialmente polêmica. Complexa porque eu me propunha a expor, para um público não especializado, questões que estão sendo discutidas na fronteira da macroeconomia. Polêmica porque o Banco Central está sob permanente pressão política para reduzir o juro, isolado na defesa da estabilidade monetária, em um país onde a demanda por gastos públicos é inesgotável e a irresponsabilidade fiscal é regra. Quando a inflação finalmente dá sinais de ceder e o Banco Central dá início ao corte da taxa básica, pode parecer inoportuno levantar a hipótese de que a política monetária das últimas décadas foi equivocada. Refleti, consultei amigos experimentados na vida pública e concluí que era importante abrir o debate. O interesse provocado pelo texto, assim como a intensidade da controvérsia entre meus colegas economistas, superaram as expectativas. Sinto-­me compelido a voltar ao tema.

Primeiro, mais algumas observações sobre a propriedade ou a impropriedade de se levantar a questão. A menos que pautados pelo sensacionalismo, o fato de suscitar interesse e a controvérsia não são necessariamente critérios para julgar a propriedade de uma publicação, mas dada a seriedade e a relevância do tema, fica claro que a discussão é oportuna. A maioria dos analistas parece ver com bons olhos a possibilidade de que os avanços da teoria monetária possam vir iluminar a questão dos altíssimos juros no Brasil. Entre os que questionaram a oportunidade do texto, uma vertente sustenta que, como a discussão acadêmica é ainda inconclusiva, seria melhor aguardar antes de abrir a debate. Uma segunda vertente teme que a crítica à teoria monetária dominante, ainda que analiticamente séria e empiricamente fundamentada, possa vir a dar margem para que a profusão de teóricos idiossincráticos que assola o país ganhe espaço na formulação de políticas públicas. Não são preocupações de todo injustificadas, mas sem transparência e confiança na razão não há progresso.

A teoria monetária, como sustenta John Hicks, está ainda mais associada a questões institucionais do que a própria teoria econômica. Ao longo dos últimos séculos, o seu questionamento e a sua revisão teórica sempre estiveram associados a grandes crises financeiras. Primeiro, com a inconversibilidade da moeda, decretada na Inglaterra em 1797, devido à crise provocada pelas guerras napoleônicas. O debate entre os críticos e os defensores da inconversibilidade, bullionistas e anti­bullionistas, foi retomado quatro décadas mais tarde, com a volta da conversibilidade, entre as chamadas Banking e Currency Schools. Na primeira metade do século XX, a discussão da questão das reparações de guerra e sobre a depressão dos anos 30, a partir da contribuição de Keynes, levou a um novo consenso sacramentado em Bretton Woods. Com a crise financeira deste início do século não foi diferente. Está em curso um intenso processo de revisão da ortodoxia monetária, que deverá refletir também o avanço tecnológico e a perda de importância do papel-moeda no sistema de pagamentos. A importância do tema para o interesse público exige que a discussão não seja feita a portas fechadas, que não fique restrita à academia. Assim como foi o debate na Inglaterra nos séculos XVIII e XIX, deve ser discutido também através dos meios de comunicação vigentes. É parte do processo de educação democrática. Passemos então à questão de fundo teórico que parece ter dado margem a alguma confusão.

Ameaçados de deflação desde a crise financeira de 2008, os países avançados viram-­se diante da possibilidade de que a taxa de juros viesse a bater no seu limite nominal inferior e lá ficasse por um longo período. Michael Woodford, no encontro de banqueiros centrais de Jackson Hole de 2012, sugeriu que para escapar da armadilha da deflação o banco central deveria utilizar o que se convencionou chamar de “forward guidance”, algo como “direcionamento futuro”, anunciando que a taxa de juros ficaria num nível muito baixo por um período longo de tempo. Ocorre que, quando o banco central anuncia que manterá a taxa de juros fixada num determinado nível por um tempo suficientemente longo, a taxa de inflação de equilíbrio é dada pela equação de Irving Fisher, ou seja, é igual à taxa nominal fixada pelo banco central menos taxa de retorno real da economia. Se a taxa nominal fixada pelo banco central for baixa, a inflação será baixa, se for alta, a inflação será alta. Inverte-­se assim a clássica relação entre juros e inflação. Este é o resultado lógico do atual modelo macroeconômico de referência, cujo principal formulador é o próprio Michael Woodford, com a hipótese de antevisão perfeita, a versão não estocástica, ou sem incerteza, das expectativas racionais.

O resultado é surpreendente e paradoxal, pois a taxa de juros tem efetivamente uma relação inversa com a demanda agregada. Juros mais altos reduzem a demanda e devem moderar a inflação. Aceitando-­se o modelo de referência e a hipótese de expectativas racionais, não há como escapar da conclusão: a inflação de equilíbrio acompanha o nível da taxa nominal de juros fixado pelo banco central. Quanto mais alta a taxa de juros, mais alta a inflação. A contribuição de John Cochrane, no seu último trabalho citado no meu artigo anterior, é compatibilizar esse resultado lógico com a possibilidade de que no curto prazo a taxa de juros esteja inversamente relacionada com a inflação. Depois de examinar inúmeras “distorções” alternativas, Cochrane conclui que só a combinação da chamada Teoria Fiscal do Nível de Preços de Christopher Sims com o modelo macroeconômico de referência permite uma explicação lógica para a evidência de que o aumento do juro reduza a inflação no curto prazo, mas quando fixado por um período prolongado, faça a inflação convergir para o nível da taxa de juros. O resultado ressalta a interdependência das políticas monetária e fiscal, uma questão política crucial que por muito tempo foi desconsiderada pela teoria.

A explicação de Cochrane é intelectualmente estimulante, parece-­me promissora, mas como ele mesmo reconhece, tem alguns pontos questionáveis. Tanto a inflação de equilíbrio, determinada pela taxa nominal de juros através da equação de Irving Fisher, quanto a relação inversa entre juro e inflação no curto prazo, resultado do menor valor redescontado da dívida pública, são consequências lógicas do modelo, mas sem conteúdo intuitivo. Dependem essencialmente das expectativas racionais, ou seja, de que os agentes econômicos formem suas expectativas com base no próprio modelo.

As expectativas racionais têm apelo lógico e permitiram inegáveis avanços na modelagem macroeconômica. Apesar de um certo irrealismo da hipótese, é difícil sustentar que as expectativas sejam sistematicamente irracionais. O mais razoável é supor que, através de um processo de aprendizado iterativo, as expectativas tendam para o que seriam expectativas racionais. É o que fazem Woodford e Garcia-­Schmidt num estudo de 2015, onde eles se perguntam se as baixas taxas de juros são de fato deflacionárias. Assumem que as expectativas são formadas através de um processo de aprendizado iterativo ao qual dão o nome de “reflexivo”. Como quase todo trabalho de Woodford, o artigo é formal e pesado, impenetrável para os não iniciados, mas o resultado interessante.

Apesar de confirmar que, com as expectativas racionais no modelo de referência, a taxa de inflação acompanha a taxa de juros fixada pelo banco central, os autores sustentam que esse resultado não tem relevância prática. Só os equilíbrios que resultam de um processo de expectativas formadas a partir de um processo de aprendizado, como o reflexivo proposto por eles, no qual as pessoas comparam suas expectativas com os resultados dessas expectativas, num processo iterativo, têm relevância prática. Nesse caso, demonstram, não há razão para crer que o equilíbrio final corresponda ao das expectativas racionais. Concedem, contudo, se as taxas de juros forem interpretadas como portadoras de informações que o banco central possui, mas que todo mundo mais desconhece, o resultado é efetivamente fazer com que a inflação acompanhe a taxa de juros fixada pelo banco central. A taxa nominal fixada pelo banco central funcionaria, nesse caso, como balizador das expectativas.

O esforço para modelar as expectativas de forma menos irrealista é um louvável avanço analítico. O tema é realmente interessante e complexo, mas para não perder o leitor que se esforçou para acompanhar o argumento até aqui, volto ao caso brasileiro.

No Brasil, a inflação é muito pouco sensível à taxa de juros. As razões da ineficácia da política monetária são muitas e controvertidas, mas a baixa sensibilidade da inflação à taxa de juros é indiscutível, uma unanimidade. Por outro lado, com a dívida pública em torno de 70% do PIB, uma taxa nominal de juros de 14% ao ano exige um superávit fiscal de quase 10% do PIB para que a dívida nominal fique estável. Com a economia estagnada e a inflação perto dos 6% ao ano, isso significa que é preciso um superávit fiscal primário de quase 5% da renda nacional para estabilizar a relação entre a dívida e o PIB. A carga tributária está perto dos 40% do PIB, alta até mesmo para países avançados, ameaça estrangular a economia e inviabilizar a retomada do crescimento. A dificuldade política para reduzir despesas é enorme. Fica assim claro que o custo fiscal da política monetária não é irrelevante.

O Banco Central do Brasil tem quadros competentes, suas diretorias foram sempre ocupadas pelos melhores profissionais, mesmo durante os governos mais economicamente irresponsáveis, e tem cumprido o seu papel de defensor da estabilidade monetária. Tenho plena consciência da importância da autonomia do Banco Central. Por isso mesmo, sempre evitei me manifestar diretamente sobre questões monetárias conjunturais. Abro uma exceção. Suponha o caso de um paciente com doença crônica para a qual se ministra um remédio há décadas. Há unanimidade médica de que, no caso desse paciente, a doença é resistente. Doses maciças vêm sendo receitadas sem resultado. Os efeitos secundários negativos são graves, debilitam e impedem a recuperação do paciente, que agora se encontra na UTI. Novos estudos, ainda que preliminares, questionam a eficácia do remédio. Pergunta: deve­-se continuar a ministrar as doses maciças do remédio ou reduzir rapidamente a dosagem? Parece-­me questão de bom senso.

Nunca é demais repetir que o equilíbrio fiscal de longo prazo é fundamental. Da política monetária só se pode pedir que evite maiores flutuações do nível de atividade e balize as expectativas de inflação. Sem credibilidade fiscal a política monetária é impotente. O governo Temer tem demonstrado intenção de reverter o dramático quadro das contas públicas e, surpreendentemente, conseguido vitórias expressivas na aprovação de medidas nesse sentido. Os resultados começam a aparecer, a inflação já dá sinais de convergir para o centro da meta. Com o avanço das reformas de consolidação fiscal ­ para o que a da Previdência é fundamental ­ o novo ritmo de redução da taxa de juros, anunciado pelo Banco Central, pode dar início a um círculo virtuoso de credibilidade fiscal e de crescimento, sem o que a tarefa do Banco Central é inglória.

André Lara Resende é senior research fellow na Columbia University e está escrevendo livro, a ser publicado pela Companhia das Letras, sobre o debate que pautou a política monetária no Brasil desde o pós­Guerra

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