Teto dos gastos vai parar o governo se não for bem feito


Na avaliação do economista Edmar Bacha, diretor do Instituto de Estudos de Política Econômica da Casa das Garças e um dos pais do Plano Real, há dois pontos que merecem atenção redobrada no ajuste fiscal em curso. O primeiro é a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que vai fixar o teto para os gastos públicos.

A proposta precisa, obrigatoriamente, ser acompanhada pela suspensão temporária das despesas obrigatórias previstas na Constituição. “Se você impuser um teto de gasto, com a pequeníssima margem que existe hoje, poderia fazer o governo parar por não ter lápis nem papel higiênico para poder operar”, diz Bacha.

O outro ponto importante é que o governo precisa deixar mais claro à população que o tamanho do rombo das contas públicas é muito maior do que o projetado quando se inclui o pagamento dos juros da dívida. “O buraco não é de R$ 170 bilhões. É de R$ 570 bilhões. Por alguma razão, o pessoal esquece que a gente precisa pagar juros.” A seguir, os principais trechos da entrevista que o economista concedeu ao Estado.

Como o sr. avalia as primeiras semanas do governo em exercício?

Achei melhor do que a encomenda. O início foi muito auspicioso. Temos agora uma equipe econômica excelente. Foi uma mudança da água para o vinho. Agora tem gente que entende do que está fazendo. É um pessoal da mesma linhagem do Plano Real. Estou especialmente impressionado com a capacidade do governo de fazer passar coisas que eram muito difíceis no governo Dilma. Passaram agora, com enorme facilidade, a DRU (Desvinculação de Receitas da União). E passaram com uma votação impressionante a favor. Eu lembro, lá atrás, a dureza que foi passar o fundo social de emergência (uma espécie de DRU, esse fundo deu ao governo de Fernando Henrique Cardoso o controle de 20% das verbas ao governo federal). Lá atrás eram 20%. Agora, eles passaram 30% e aplicando para os governos estaduais e municipais também. Se fosse a Dilma, a proposta já tinha sido toda desvirtuada e não andaria.

E como o sr. viu o apoio do governo ao projeto que aumenta o salário dos servidores e eleva gastos?

Parece que havia essa herança e tiveram de acomodar. Obviamente, não quiseram comprar essa briga logo na saída. É um dano, mas é parcial. Esse governo precisa saber como se equilibrar na questão política de uma forma que não é necessariamente a que mais gostaríamos. A situação para ele é muito precária. Tem a questão da interinidade e da incerteza que ainda permanece em relação à votação final do impeachment. Por outro lado, ainda tem a Lava Jato. Não se sabe até onde ela vai. Esses são dois grandes fatores de insegurança.

Em um artigo recente, o sr. ressaltou que o déficit projetado pelo governo em exercício, de R$ 170 bilhões, era apenas um pedaço do buraco. Poderia explicar melhor?

Os R$ 170 bilhões incluem apenas o déficit primário (despesas com pessoal, previdência, saúde, educação, benefícios sociais e investimentos). Não incluem a conta dos juros (da dívida pública). Eu fiz uma conta de quanto haverá de juros, baseada no que os juros foram no ano passado e até maio deste ano, comparado com maio do ano passado. Deu R$ 400 bilhões. O buraco não é de R$ 170 bilhões. É de R$ 570 bilhões. As pessoas não estão levando isso em consideração. Por alguma razão, o pessoal só conversa sobre o primário e esquece que a gente também precisa pagar juros da dívida.

Vários colegas seus, economistas, se queixam que a discussão dos juros fica de lado.

Eles têm mesmo razão de se queixar. Essa conta é muito salgada.

E como resolver essa conta?

Tem duas maneiras. A maneira errada é dar o calote. A maneira certa é fazer um esforço fiscal do ponto de vista de curto, de médio e, especialmente, de longo prazo, que aponte para a sustentabilidade da dívida. A partir daí, com a confiança de que as contas vão se equilibrar – não agora, mas que isso está a caminho, por medidas legislativas e ações do governo. Isso cria no mercado, instantaneamente, uma (perspectiva de) queda do juro no longo prazo.

E a questão da inflação?

Contribui agora termos um Banco Central com mais credibilidade, com um novo presidente afirmando, com ênfase, que vai perseguir o centro da meta de inflação (de 4,5% ao ano). Isso cria expectativa favorável quanto ao curso futuro dos juros. Os dois fatores – confiança no equilíbrio fiscal futuro e a responsabilidade monetária sendo restabelecida – criam condições para que as expectativas em relação à inflação baixem. Isso permite ao Banco Central, em função dessa queda de perspectiva inflacionária, reduzir os juros mais fortemente. Essas condições não existiam antes. Vamos ver como será a próxima etapa crucial para que cheguemos a isso: o presidente Michel Temer levar ao Congresso a emenda constitucional que estabelece o teto para os gastos.

Como o sr. viu a iniciativa de fixar o teto para os gastos?

Foi ótima. Para definir a medida, Meirelles (Henrique Meirelles, ministro da Fazenda) está usando uma palavra com muito simbolismo: nominalismo. Muito simbolismo para meia dúzia de pessoas. No caso, economistas.

O sr. pode explicar qual o simbolismo do ‘nominalismo’ do ministro?

O simbolismo da medida é que, com ela, nós não vamos acomodar a inflação. Não vamos fazer como os militares, que indexaram tudo e deixaram a inflação correr. As pessoas andam preocupadas com detalhes da medida. Obviamente, precisam ser avaliados. Mas o importante é que a expectativa em torno da medida não se frustre. A margem de manobra que o governo tem sobre os gastos do orçamento, com as regras constitucionais hoje existentes, é muito pequena. Se você impuser um teto de gasto, com a pequeníssima margem que existe hoje, poderia fazer o governo parar por não ter lápis nem papel higiênico para poder operar. Por isso, essa medida precisa ser acompanhada de outras que flexibilizem gastos obrigatórios – que também são constitucionais. É a mensagem mais importante.

Essa questão é considerada fundamental, principalmente porque não há consenso de que bastaria desvincular os gastos na própria emenda ou se seria necessária uma série de medidas paralelas para desarmar o engessamento. O sr. tem uma sugestão?

A PEC que estabelece o teto teria de valer durante um período, de 10 ou 20 anos. Não seria ad infinitum. Precisaria de um prazo de vigência longo, mas não para sempre. E enquanto a PEC estiver valendo, você suspende a constitucionalidade das vinculações, da estabilidade do funcionalismo e da gratuidade da saúde e da educação, por exemplo. Pode ir tudo junto, na mesma PEC. É mais ou menos assim: no artigo primeiro, estabelece­se o teto, e, no artigo segundo, já vem algo como: ‘enquanto estiver valendo o teto, as seguintes regras constitucionais deixam de ser observadas e passam a ser reguladas por meio de leis complementares’. Assim, vai se fixar como fica o financiamento e o copagamento no sistema de saúde, no ensino público superior e as desvinculações em geral. Pode ser na mesma emenda, em disposições transitórias. O que não pode é estabelecer um teto e paralisar o governo. Precisa mexer no gasto obrigatório. A flexibilização significa que o governo vai ter de deixar de fazer algumas coisas. Hoje ele faz A, B e C. Ele vai ter de parar de pagar C, para que A e B possam funcionar. Mas esse C está protegido pela Constituição. A flexibilidade é necessária.

O governo ainda não explicou quem vai pagar a conta do ajuste. Ao pedir as desvinculações, os críticos alegam que vai sobrar para a população, que depende dos serviços básicos que o sr. mencionou. Há esse risco?

Não é verdade. A saúde pública e a educação pública podem até melhorar, mas elas não vão mais estar disponíveis, de graça, para quem pode pagar. Para quem tem recursos é preciso que a medida venha acompanhada de um regime de coparticipação. Assim, a boa saúde e a boa educação públicas ficam disponíveis para quem não tem recursos. O Zé Márcio (José Márcio Camargo, economista da Opus) tem uma proposta: quem pagou ensino médio, paga ensino superior. Quem tem seguro médico, paga o SUS. O tratamento aos mais pobres deve ser mantido. O que não pode é essa judicialização da saúde. Pessoas com recursos conseguem acesso a tratamentos ultra sofisticados e a remédios caríssimos pelo SUS. Isso acontece porque diz lá na Constituição: é gratuito, é universal. Então, precisa dizer que temporariamente não será.

O sr. concorda que nada disso está claro ainda?

Não está claro e é compreensível que o governo não queira levantar essas lebres agora, antes da definição do impeachment. Ele lança agora o teto, é importante criar essa expectativa. Nos próximos dois meses, vamos discutir como dar efetividade ao teto. Depois do impeachment, vamos ver quais são as medidas necessárias para que o governo continue a funcionar com o teto – e isso protegendo integralmente os gastos que se destinam à parcela mais pobre da população.

Seus colegas de Plano Real dizem que ele ficou incompleto. Daqui para frente, há espaço para implementar as reformas que faltaram?

Eu não gosto dessa mitologia sobre o Plano Real. Eu mesmo sou culpado por isso. Acabei de falar da linhagem do Plano Real. Vamos deixá­lo para trás. Virou história. Mas, olhando para frente, a mãe de todas as reformas é a reforma política. Precisamos de um sistema político minimamente decente – essa é a palavra a ser usada. O sistema precisa ser redefinido de modo que tenha a representação mais fidedigna da vontade popular de hoje. Não dá para ficar com o sistema que esta aí.

Há outras reformas vitais?

Precisamos dar um jeito no sistema tributário. A Previdência precisa apontar para o equilíbrio. A reforma trabalhista precisa vir para acabar com o grau de informalidade e a extraordinária rotatividade no emprego, que impede o aprendizado do trabalhador. Temos de retomar as coisas que foram abandonadas. Precisamos de um mecanismo para que o governo, junto com o setor privado, possa investir. E finalmente tem o meu tema predileto: a abertura da economia. Nossa participação ínfima no comércio internacional é uma anomalia.

O sr. se considera otimista?

É muito difícil ficar otimista com essa situação. Tem um grau de incerteza brutal, por causa da interinidade do governo e da extensão da Lava Jato. A interinidade se resolve em agosto; a Lava Jato, segundo uma declaração de Sérgio Moro, pode mudar em dezembro. Estamos agora na fase de quem deveria (ser envolvido), já foi. Quem não foi, não vai mais. E foi muita gente. Até o japonês da Federal