Casa das Garças

Tocquevilleanas: Um estudante brasileiro nos EUA, 1964/65

Data: 

21/05/2020

Autor: 

Edmar Bacha

Veículo: 

Academia Brasileira de Letras

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Cheguei aos EUA para fazer pós-graduação em economia na Universidade de Yale no final de agosto de 1964. Tinha então 22 anos. Em meu primeiro ano lá, escrevi assiduamente a minha mãe. Nessas cartas, faço algumas digressões sobre os EUA em contraste com o Brasil de então. Seguem excertos das cartas com minhas observações “tocquevilleanas”1 sobre a América, ou, mais precisamente, sobre Nova York e Nova Inglaterra.

 

Desembarcando em Nova York

01/09/1964: Terminada a exposição [a respeito de minha chegada a NYC, dois dias antes], devem vir as impressões. Mas para usar lugares comuns e colocar uma centena de adjetivos descomunais, creio que já bastaram os cartões postais que enviei aos irmãos. Afora de vez em quando comer gato por lebre, por não saber que bicho tem lá dentro das comidas, acho que só desgostei das gorjetas que a gente tem que dar – e nessa hora não há como não pensar em termos de cruzeiros. Só para os carregadores lá em NY e aqui em New Haven, foram 2 dólares e 15 centavos, ou seja, algo aí pela casa dos 3.500 cruzeiros! Assim, não há santo que aguente!2

 

Chegando em New Haven

05/09/1964: New Haven é realmente uma cidade encantadora, a arquitetura é toda estilo colonial americano, típica da Nova Inglaterra. Acho que deve lembrar em alguma coisa as cidades de Santa Catarina, com as casas espaçadas, ajardinadas, de tijolos avermelhados e uso de madeira.

10/09/1964: New Haven é bem maior do que imaginava. Tem uma indústria média, um porto algo movimentado e 150 mil habitantes na cidade ou 250 mil na “grande” New Haven. Há uma grande variedade de tipos raciais. Logo aqui perto tem um bairro só de negros, onde fui à missa no domingo passado. A área ocupada pela Universidade, cerca de 20 quarteirões, parece ser a mais acolhedora, fora dela há casas bastantes velhas, mas também residências bastante boas. Pode ser primeira impressão, mas os preços por aqui variam de uma casa para outra mais do que no Brasil: de uma grocery para um supermarket a diferença é fabulosa.

 

Compras e contas

10/09/1964: Fiquei conhecendo uma senhora italiana [Ms. Tassi, secretária no departamento de economia, que gostava de acolher brasileiros], em casa de quem [Claudio Moura Castro] havia deixado sua bagagem [para eu enviar para ele na Califórnia]. Já ontem jantei na casa dela. Como ela me levou de carro, antes passamos por um supermercado, alías “o” supermercado, onde comprei camisas e cuecas baratas inclusive se transformado o gasto em cruzeiros.

18/09/1964: Hoje à tarde fui fazer compras no mesmo shopping center que tinha ido com a senhora italiana. Gastei 45 dólares, comprando um casaco bárbaro (só ele, 25 dólares), camisas, meias de lã, cuecas (também das compridas) e sei lá mais o quê. Agora só faltam o barbeador e a máquina de escrever (que estou apreçando pela cidade toda), além de luvas e capa de chuva. Quanto ao carro, está de molho: por eu ser menor de 25 anos, só de seguro tenho que pagar cerca de 250 dólares.

22-23/09/1964: Hoje, voltei ao shopping center para comprar uma capa de chuva e um barbeador [elétrico]. Desta vez, fui de ônibus e é um bocado longe – na verdade, é em outra cidade, Hamden, mas a gente não sabe quando se passa de New Haven para lá, porque o movimento continua o mesmo ao longo da avenida. Mas compensa: o barbeador, p.ex., tem o preço dado pela fábrica para o varejo de $19.95; no Caldor, custa $12.88. Uma máquina de escrever que por aí está cotada a $70, lá eles cobram $50!

09-10/10/1964: Tive fazendo umas contas: apartamento, $45 [aluguel dividido por 3]; telefone, $2; ‘abastecimento’, $32; lavanderia, $5 – e estou chegando à brilhante conclusão que, cozinhando em casa e aqui fazendo todas as refeições, o “mínimo vital” se reduz a $100 dólares. Pondo aí que seja mais uns $50 para variedades, isso significa que devem sobrar uns $100 por mês [de uma bolsa que era de $250 por mês].

 

Cores de outono

22-23/09/1964: Domingo fizemos um tour por recantos pitorescos de Connecticut, no carro de Dave [Barkin]. Além dele, Celso Furtado, Werner [Baer], Clóvis [Cavalcanti] e eu. Foi bastante agradável, desde o bate-papo, passando pela paisagem, até uma típica pequena cidade da antiga colonização na Nova Inglaterra. Agora que o outono está batendo à porta, extremamente bonito notar a transformação da vegetação nos campos, com as árvores tendo suas folhas amareladas, depois avermelhadas, num processo multicor que nunca antes havia visto no Brasil. Também paramos em barracas à margem da estrada, onde os fazendeiros locais vendem algo de sua produção de frutas, para comprar maçãs e ameixas deliciosas, além de um galão de cidra (suco de maçã), também muito bom.

 

Questão racial

06/10/1964: Sábado fui jantar no Hoffbrau Haus Restaurant, decididamente germânico, e depois dançar no Sound Track, um centro de jazz e rock’n’roll frequentado pela classe média dos pretos: você precisa ver a distinção dos dançarinos. Isso me provoca outro ponto. É difícil para a gente, que vem de um país subdesenvolvido de tradição escravocrata, compreender essa ascensão social do negro aqui nos EUA. É certo que os negros estão predominantemente nos níveis mais baixos de renda, mas pobres, aqui nos EUA, como entendido pelo governo de [Lindon] Johnson em seu propósito de “guerra contra a pobreza”, são famílias com quatro filhos com renda anual inferior a 3.000 dólares, e esses contam por 1/5 da Nação3. De qualquer modo, aqui em New Haven, não se pode encontrar uma pessoa para serviço doméstico, é preciso “prestígio” [muito dinheiro] para isso. E é algo revelador ver os negros levando a mesma vida que os brancos, dirigindo seus próprios carros de último tipo, tendo famílias normais, dispondo de clubes, como o Sound Track, segundo os experts melhor que qualquer lugar dos brancos. Quando vejo isso, a impressão que tenho é que a diferença quanto ao Brasil é mais de grau do que de natureza, no que se refere à discriminação racial, aí escondida sob a capa da discriminação social.

Isso é observação puramente pessoal, não conheço nem dados empíricos nem formulações sociológicas a respeito, mas temo que o Brasil venha a repetir os EUA em conflitos raciais, quando a base material de nossa sociedade e seu sistema educacional propiciarem ao negro igualdade de condições de partida com o branco.

De qualquer modo, é estimulante a gente entrar em contato com esse pessoal mais intelectualizado e ver que o liberalismo, no bom sentido da palavra (significando a crença na capacidade criadora do indivíduo e a luta pela queda de todos obstáculos institucionais a essa ação criadora), é profundamente arraigada na inteligentzia norte-americana – e ver pessoas dando tudo de si, até a vida (como três estudantes em Mississipi em junho4), pela definitiva integração do negro na sociedade americana, dentro dos princípios da lei dos direitos civis5.

Pode ser que esteja enganado, por demais influenciado pelo meio em que vivo, mas, pelo menos por esse aspecto, diria sem dúvida que a luta da sociedade norte-americana é pela grandeza e não pela sobrevivência. (Esta última frase aí é para ser acompanhada com uma marcha marcial para melhor efeito cívico…).

 

Johnson v. Goldwater

13-14/10/1964: Hoje, fui ver a palestra do Milton Friedman sobre “A política econômica de Goldwater”, que queria ver como alguém podia pôr isso em termos racionais. Esse Friedman é o principal assessor econômico do [Barry] Goldwater [candidato do Partido Republicano à Presidência] e, como não podia deixar de ser, ultraconservador. Mas qualquer modo é um hábil e inteligente economista, fazendo lembrar o Eugenio Gudin. Pelo menos me convenci de que se a candidatura do Goldwater tem sua “rationale”, ela é decididamente século XIX.

(…) O New York Times está hoje meio murcho com o novo foguete soviético. Quem deve ter gostado é o Goldwater, que isso o ajuda a perder de menos.

20-21/10/1964: Depois daquela explosão de acontecimentos internacionais na semana passada, parece que depois de novembro, com a provável reeleição de Johnson, muita coisa vai mudar nesse planeta. Depois da espaçonave tri-tripulada dos russos, a explosão da bomba atômica chinesa foi recebida com uma certa calma (ou resignação…) por aqui, não constituindo tema de exploração eleitoral. Pela fala do Presidente [Johnson] antes de ontem e pelas primeiras manifestações “pacifistas” chinesas depois da bomba, parece que o resultado vai ser o apressamento do tratado de proscrição nuclear, com o reconhecimento da China comunista por parte dos EUA. O novo governo soviético é como sempre uma incógnita e a diversão do New York Times é descobrir “quem manda mais do que quem” pela ordem em que os retratos dos novos líderes estão colocados nas ruas de Moscou6. Johnson, entretanto, já assinalou um bom início de relações com o novo governo.

Aqui, internamente, explodiu um triste caso com um auxiliar de Johnson e seu amigo particular, que a polícia prendeu “por atentado ao pudor público”. Acontece que esse auxiliar, de nome [Walter] Jenkins, tinha acesso a informações que concernem à segurança nacional e, nos termos pessoais em que a campanha política é conduzida aqui, os republicanos já estão estendendo faixas: “Jenkins: Johnson: Profumo?”7. E o Goldwater, que vinha se dizendo “restaurador da moralidade pública” não vai perder essa oportunidade para ganhar mais uns votinhos da classe média sulista.

27/10/1964: A campanha política aqui entra feroz em sua semana final. Acho que no sábado tem o comício final do Johnson em Nova York, com Louis Amstrong, Sammy Davis Jr. e outra centena de celebridades. As últimas estimativas dão 60% para Johnson, 30% para Goldwater e 10% indecisos, mais ou menos. Os ataques pessoais, principalmente por parte dos republicanos, estão uma coisa tremenda; chegaram a fazer um filme “American moral decay under Johsnon” com cenas tão pornográficas que o próprio Goldwater teve que pedir o adiamento de sua exibição

04/11/1964: Hoje o tempo se abriu novamente e está um dia lindo, com o sol radiante saudando a vitória de Johnson [na eleição para a Presidência]. Também não tem aula porque o professor [talvez, Lloyd Reynolds] deve ter reunido os membros do departamento de economia em seu apartamento ontem, para acompanhar os resultados pela televisão e bebemorá-los devidamente. Aqui em New Haven, de cada 4 votos 3 foram democratas e, em Connecticut, os democratas venceram em toda linha, na senatoria e nas seis cadeiras para o Congresso. Em Nova York, parece que o Johnson “carregou” o [Bob] Kennedy para Senador, e olha que até o NYTimes, que é bastante “liberal”, estava apoiando o [Kenneth] Keating [Senador republicano que concorria à reeleição].

 

Informalismo e igualdade

04/11/1964: Você precisava ver que informal é a missa na igreja da Universidade – St. Thomas Morus. A participação é do tipo daquelas missas de estudantes, inclusive com os participantes fazendo coro às canções religiosas. E o padre antes do sermão conta piadas, anuncia bailes e convida para festas. A Igreja tem realmente que se adaptar aos novos tempos — e ainda tem gente no Concílio Ecumênico contra o controle ‘artificial’ da natalidade!

E aquela impressão que comecei a ter, de que o problema com os americanos é que eles falam inglês enquanto nós falamos português, cada dia a firmo mais. As diferenças pessoais importam muito mais do que as diferenças nacionais – gente é gente por toda parte. Em NY, dizem, o povo é muito ríspido, mas isso é no mesmo sentido que nós dizemos que os paulistas são mal-educados. Agora, numa cidade pequena como esta, a não ser por falta de tempo, é só por falta de querer que um estrangeiro pode não se integrar. Quanto à sociedade, por exemplo, ser muito mais igualitária (o que lhe é permitido pelo grau de capitalização alcançado) do que a nossa, isso traz certos incômodos, como o fato de você não poder ter uma empregada. Mas isso, primeiro, é parcialmente compensado pela mecanização dos serviços caseiros, com aspiradores de pó, enlatados, máquinas de lavar pratos etc.; e, depois, só o fato de viver numa sociedade igualitária, de saber que você não vai esbarrar com mendigos em cada esquina, que é mínima a percentagem das pessoas morando em favelas, enfim, o fato de saber que todos seus compatriotas estão mais ou menos bem de vida, acho que compensa quaisquer dissabores que a gente possa ter por lavar pratos ou limpar casa. E, afinal, que diabos, se o progresso econômico não incrementasse a felicidade humana que sentido haveria em falar em progresso!

 

Assombros tecnológicos

21/11/1964: Veja que beleza fazer ligação [telefônica interurbana]: a distância [de New Haven a Berkeley] é de 3.000 milhas, que deve ser algo como do Rio Grande do Sul a Manaus ou Belém. A gente disca 1 (porque aqui é área “suburbana”), 305 (que é o código de área de lá) e 848.8243 (que é o número do telefone). Daí a 10 segundos o telefone de lá começa a tocar e o Claudio [Moura Castro] atende como se estivesse aqui no vizinho! A ligação é direta, sem telefonista, nem mais nada, e custa apenas 1 dólar por cada 3 minutos!

15/12/1964: Mando em anexo um exemplar dos cheques pessoais que meu banco, logo a duas quadras, fornece. É a própria eficiência: os cheques são descontados na boca do caixa, sem qualquer verificação dos fundos. Naturalmente, não pagam juros; ao contrário (como é normal numa economia sem inflação, pois os serviços bancários são uma facilidade que custa um preço) cobram 50 centavos de dólar por mês, mais 10 centavos por cada cheque emitido. Todo mês, graças ao sistema próprio de computadores eletrônicos, recebo um statement da movimentação de minha conta, bem como todos os cheques e fichas de depósitos emitidos.

05/01/1965: Na Feira [Mundial] de Nova York8 tinha umas cabines experimentais de telefone com televisão, mas era só para falar com a pessoa na cabine ao lado. Agora, o picture/phone já está sendo lançado comercialmente, por enquanto apenas com três cabines, em Nova York, Washington (DC) e Chicago; e a preços absurdos, 27 dólares por 3 minutos. Mas do jeito que a tecnologia moderna progride, daqui a pouco eles inventam um processo revolucionário e está todo mundo com telefone/televisão em casa9.

 

Arte de “dating”

24-25/10/1964: Quanto às americanas, não se preocupe com essas histórias tipo lendas que circulam sobre “lá é diferente”. No fim, basicamente, tudo é a mesma coisa, com a diferença que é expressada em inglês e não em português.

08/01/1965 [Qualificando a observação anterior para minha mãe, em carta para uma amiga em Belo Horizonte]: Aqui em matéria de namoro tem umas bossas diferentes. A primeira palavra que a gente aprende é date; to have a date é ter um encontro. O modo de approach varia muito, mais o fato de todo mundo ter telefone facilita bastante. De vez em quando, a gente vai na base do blind date, arranjado por amigos, e até agora não fui surpreendido com desagradáveis surpresas, quando topei ir às cegas.

Naturalmente, há mais liberdade de movimento. Como aqui em New Haven garotas são um bem escasso, volta e meia os Yalemen estão abaixando no Vassar College, no estado de Nova York, para os mixers (isto é, festa a que a gente vai sem date) que as garotas dão por lá, nos salões da universidade mesmo. Se a gente der sorte, pode convidar a garota para vir passar o próximo fim de semana aqui. E parece que elas ficam honradas com esse convite e podem contar vantagem para suas colegas, que foram convidadas por um Yaleman. Mas aqui a gente tem que pagar hotel e refeições para elas e dar assistência integral – e é bom não ficar com muita minhoca na cabeça que nem sempre o resultado é o que seria de esperar.

Quanto às garotas de New Haven, não sei se por serem geralmente disputadas (Yale tem 8.000 estudantes, todos homens, menina!), são, pelo menos as que conheci, bastante informais – casual, como se diz aqui – quanto a namoro. Não sei explicar ainda se elas não se preocupam com casamento (ah, duvido muito disso!) ou se partem do princípio de que, afinal de contas, eu estou aqui apenas por uma temporada. Também, há o problema da falta de tempo; consigo sair de 15 em 15 dias, de vez em quando uma vez por semana, mas o resto do tempo é só no telefone.

 

Boa vizinhança, tempo e correio

01/02/1965: Werner [Baer] convidou [Celso] Furtado, Clóvis [Cavalcanti] e eu para almoço, para discutirmos com a organizadora da excursão anual de 100 brasileiros (estudantes universitários) aos EUA, sobre como deveria organizar-se o programa de cinco semanas, para provocar o rendimento máximo. Já há algum tempo atrás tinha almoçado com a outra responsável pelo programa, também convocado pelo Werner. Parece que agora esse povo está ficando mais inteligente para provocar o good will brasileiro. Corta conferência e põe esse pessoal para viver a América, sentirem seu povo, conversar com estudantes americanos – que é a melhor política de boa vizinhança possível.

24/04/1965: Que grande coisa é o Brasil ser um país tropical. Hoje, já tem um mês de primavera nesta terra e a temperatura esta noite está prevista para chegar a zero grau!

Ontem foi o único dia em que o sol deu mesmo o ar de sua graça, e estava até dando para sair na rua somente de suéter. Quando cheguei aqui achava uma graça de o rádio dar um weather report de cinco em cinco minutos, ou coisa que valha, e das exclamações do Dave [Barkin] e outros amigos quando o sol saía: “What a nice day! Let’s go for a walk!”. Agora, ainda outro dia estava rindo com a Esmeralda [amiga brasileira de NY] quando ela me contou que a primeira coisa que faz de manhã é olhar a previsão do tempo no New York Times, porque a primeira que faço é ligar o rádio para ouvir a primeira previsão para o dia…

Impressionante também é a quantidade de correspondência comercial que a gente recebe, bem como de pedidos de instituições de caridade. Todo dia tem coisa nova e agora, com a formatura próxima, então volta e meia chega cartão para ser sócio de alguma coisa: Texaco National Credit Card, American Oil Credit Card, American Association of University Professors (para esta ainda é cedo…) etc.

 

Pax Americana

04/05/1965: Ontem, reunião do clube latino-americano para discussão da invasão [americana da República Dominicana]. Quinta, se não me engano, comício de protesto. Acho que o Johnson está meio abilolado – o homem deve estar doente, não tem outra explicação. Oh, e essa dopada opinião pública americana – como é que engole essa palhaçada?

11/05/1965: No fim [de jantar em casa de Celso Furtado], ficamos só eu e o [Carlos] Díaz [Alejandro] – e Furtado estava com a corda todo. Foi um papo dos mais divertidos que já tive. Sobre Editos de Caracala10;, filosofia de Epíteto, e outros coisas do estilo, evocadas pela invasão [americana] da República Dominicana. É a mais recente teoria do Helio Jaguaribe (que está em Harvard), que a Pax Americana, que se prenuncia sobre o continente, representa para o intelectual latino-americano o que a Pax Romana significou para os filósofos gregos.

23/05/1965: Ontem, estava de um mau humor terrível, com a história da remessa de tropas brasileiras para Santo Domingo. O jeito é seguir o exemplo do Helio Jaguaribe: comprei os “Discursos Morais” do Epíteto e vou me ilustrar com a filosofia estoica (depois talvez um Cínico não esteja mal), preparando-me para quando o novo Edito de Caracala for decretado. Olhe aí que a guarda pretoriana interamericana, para cuidar do povo, já está se formando.

 

Sociedade afluente

01/06/1965: De noite, fui para Amityville, que é uma cidadezinha de 10.000 habitantes em Long Island, sendo que quase todo mundo lá “comuta” com Nova York. Isso quer dizer, mora lá e trabalha cá, com o trem do subúrbio no meio. É muito típica das zonas residenciais da Nova Inglaterra. As ruas são todas arborizadas, naturalmente asfaltadas. Não há mais do que três ou quatro casas por quarteirão e geralmente sobrados, de madeira. As cores variam mas acho que o branco predomina. Amplos gramados, jardins e quintais – com separação informal entre uma residência e outra.

Os habitantes, também característicos da classe média americana. Bem remunerados, podendo dispor de todas facilidades domésticas, da lavadora de pratos ao carro modelo-1965, muito obviamente preferem dispor de mais tempo livre a exercerem atividades adicionais. As donas de casa naturalmente não têm essa beleza de empregada doméstica (quem quer ou pode pagar 50 dólares por semana só para cozinhar?), e não vou chegar ao ponto de dizer que conseguem conservar a casa como um brinco, permanentemente.

Os filhos ficam em casa até terminar a high school (16-18 anos), depois vão para os colleges, como internos. Aí, independentemente de sexo, levam uma vida independente e, ao fim de quatro anos, ou seguem para estudos pós-graduados ou se estabelecem por conta própria, geralmente morando nas cidades maiores, em grupos de dois ou três rapazes (ou moças). Um ou dois anos depois que encerram os estudos, estão casados; enquanto estudantes, ficam solteiros, via de regra.

Sobre os mais velhos, aqui inúmeros, senior citizens, ainda preciso pesquisar mais. Só para dizer alguma coisa, vou arriscar que, ou estão viajando no exterior mais ou menos em base permanente, ou moram em localidades mais retiradas. Levam uma vida serena, mas outro dia o pai de um amigo americano se queixava de que “o progresso nos permitiu uma vida mais longa, agora é preciso que nos permita uma vida mais longa e agradável”.

Essa separação geográfica, por idades, das famílias americanas já sugeriu a mais de um apressado visitante, amigos meus, que “os americanos não têm sentimento familiar”, descambando para as xaropadas de estilo, sobre o sentimentalismo do brasileiro, comparado com o materialismo do americano. A isso, o mínimo que se pode dizer é que simplesmente não é verdade. Não vou dizer que não se criam problemas e um ponta de ressentimento nos pais e avós; mas daí a negar afeto filial aos americanos é pura demonstração de ignorância, ou mais sofisticamente, de desconhecimento da natureza humana, de reações psicológicas e de sociologia de uma sociedade da abundância. (Aqui, como sempre à medida que se fica mais sofisticado, as palavras ficam mais bonitas e, correspondentemente, mais vazias).

É a existência desse tempo de sobra para exercer atividades de caráter hedonístico (essa é bonita!), que explica – arrisco – a interessante psicologia da classe média americana. Uma coisa que surpreende a gente é a quantidade de lojas de antiguidades (antiques) que se encontra à beira das rodovias. Também, a quantidade de pessoas que praticam esportes e a infinda variedade destes últimos, indo de escalar de montanhas, passando ao paraquedismo, até o trivial golfe. Na verdade, ter um hobby é frequentemente a atividade principal de uma pessoa. Tudo mundo vai a leilão de coisas antigas, as flores no jardim são cuidadosamente cultivadas e os animais de estimação recebem boa parte do tempo dos respectivos donos.

Os maridos, por seu lado, são especialistas em generalidades. A cultura jornalística (ou de almanaque, se quisermos ser um pouco mais críticos) é altamente diversificada. Todo mundo assina Seleções [de Reader’s Digest] ou então o National Geographic – ou geralmente ambos. E, naturalmente, em todas as estantes lá estará o anual Information Please Almanach, bem como Atlas e outros itens geográficos e guias de compra.

Porque sua vida depende tão pouco do que acontece no exterior – exceto pela ameaça comunista – o americano médio é inegavelmente “reacionário”, pelos nossos padrões. Johnson não mente quando diz que, apesar dos protestos do mundo acadêmicos (os egg-heads – intelectuais – são bons para dar aulas mas não têm noção do mundo prático, implicava outro dia McGeorge Bundy, a eminência parda do governo para política externa), as estatísticas mostram que os americanos apoiam sua política no Vietnam e na República Dominicana. (Além disso, afora o New York Times, é difícil encontrar outro jornal que conteste a política externa do governo). Relacionado a isso é o que Martin Luther King dizia outro dia, que para que a América acorde para o problema do negro é preciso dar uma firme sacudidela na base das instituições – a tentativa de levantar a consciência popular contra o câncer da discriminação [racial] justificando o dramático de suas gloriosas demonstrações (agora quem ficou dramático fui eu).

Mas o problema do negro agora já está colocado em termos irreversíveis, o processo de mudança social está em pleno funcionamento. Se as atrocidades do governo americano no Vietnam serão suficientes para quebrar a resistência do medo ao comunismo e provocar uma reação da opinião pública é coisa difícil de responder, mas bem que tenho cá minhas dúvidas.

Agora, quanto à América Latina não há mesmo jeito, daqui só sai neocolonialismo e olhe lá, muito cuidado que senão lhe mando os marines, digo, a guarda pretoriana interamericana.

 

Feira de Nova York

01/06/1965: Segunda-feira, feriado em homenagem aos mortos nas guerras mundiais, passei o dia na Feira [Mundial de Nova York]. O sistema de comunicações e transportes neste país é uma coisa: de qualquer parte da Nova Inglaterra – pelo menos até onde cheguei – você vai à estação de trem e compra passagem direto para a Feira. Naturalmente, se fazem baldeações mas raramente se espera pelo trem seguinte mais do que quinze minutos.

A Feira é assim um supercivilizado e imenso parque de diversões. Religião, cultura, ciência e diversões propriamente ditas, preparadas para consumo em massa, em vista do que os “intelectuais” simplesmente a detestam. Eu gosto pra burro. Tudo montado para impressionar, pelo tamanho, cores, formas, técnica. Na área industrial, o melhor show é inegavelmente o da General Electric, um teatro móvel à la carrossel, com figuras waltdisneyamente animadas, mostrando, em quatro quadros, o progresso americano, visto desde o ponto de vista da copa e da cozinha. Os bonecos são tão perfeitos que a gente só percebe não serem humanos depois de algum tempo! O segundo é o imponente pavilhão da Ford: um passeio ao passado pré-histórico dirigindo um Ford conversível último modelo e escolhendo, no rádio, a língua em que se queira ouvir as descrições do narrador. O terceiro, o da General Motors – uma visão do futuro: a conquista da Amazônia e dos desertos, dos mares e da lua, e a cidade do futuro – transportados em confortáveis cadeiras presas a uma esteira rolante. E ainda outros, da Pepsi-Cola, Coca-Cola, Chrysler, IBM, RCA etc.

Na área internacional, os pavilhões dos diversos países. O do Vaticano, um dos melhores – pra mim, padre não pôs a mão naquilo! O do México, recém-inaugurado, muito variado. O da Suécia, fraco. O de Paris, só de boutiques e pintores “ao ar livre”, muito sugestivo. Os da Tailândia e Formosa, bastante exóticos. E muitos outros.

Ainda há a área de transportes, a que não fui; a Vila Belga, em que haja dinheiro para gastar; a área de diversões; e muitos outros “quebrados”: lojas de artigos exóticos (muito caros) de toda parte, bares e restaurantes (coma o que quiser, de qualquer parte do mundo) às pencas e assim para diante.

Dominando a Feira, a avenida central, com a famosa unisfera de um lado, o pavilhão imenso dos EUA do outro, e um belo jardim com lagos e fontes de entremeio. À noite, um fabuloso show de uma imensa fonte de água luminosa (até me lembrei de Lambari…), “dançando” ao som de Chopin, coroada com uma maravilhosa chuva de fogos artificiais (saindo da própria fonte), acompanhando o som da música.

 

Fim do começo

Quando retornei para New Haven da visita à Feira de Nova York, recebi telegrama da Organização Internacional do Café, confirmando me terem aceito para um summer job em Londres. Ali permaneci por dois meses, ao final dos quais encontrei-me com minha mãe em Lisboa, tendo em seguida passeado com ela por Madrid e Paris.

Em setembro de 1965, retornei aos EUA. Não havia mais estranhamento. Lembro-me da sensação de estar voltando para casa. Os EUA eram agora um lugar cujos costumes conhecia, cuja língua dominava. Yale não era mais uma esfinge, ameaçando me devorar. Havia concluído com sucesso o mestrado, e fora aceito para o doutorado. Novos desafios me esperavam.

As cartas para minha mãe se tornaram menos assíduas, algumas se perderam, as que ficaram não mais continham relatos sobre o American way of life. Ele havia se tornado parte de mim mesmo.

 

 

1 – Tomo emprestado o título do saboroso livro de Roberto da Matta, Tocquevilleanas: Notícias da América – Crônicas e Observações sobre os Estados Unidos. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

2 – Os preços ao consumidor nos EUA são hoje cerca de oito vezes mais altos do que em 1964

3 – Lindon Johnson era o vice-presidente de John Kennedy e assumiu a presidência após o assassinato deste em novembro de 1963. Em outubro de 1964, era o candidato do Partido Democrata nas eleições presidenciais que comento à frente.

4 – Trata-se de três militantes do movimento de direitos civis, que foram sequestrados e assassinados em Neshoba County, Mississipi, em junho de 1964. A comoção gerada por esses assassinatos ajudou na passagem pelo Congresso da Lei dos Direitos Civis no mês seguinte.

5 – A Lei dos Direitos Civis, promulgada em 2 de julho de 1964, foi o diploma legal que pôs fim aos diversos sistemas estaduais de segregação racial, conhecidos por Leis de Jim Crow.

6 – Trata-se da tempestuosa sucessão de Nikita Kkrushchev por Leonid Brezhnev em outubro de 1964.

7 – O caso Profumo foi um escândalo político britânico com origem numa ligação sexual, em 1961, entre John Profumo, o Secretário de Estado da Guerra no governo conservador de Harold Macmillan, e Christine Keeler, uma modelo de 19 anos de idade. Quando o caso Profumo–Keeler foi revelado, o interesse público aumentou com os relatos de que Keeler poderia ter estado, em simultâneo, envolvida com o capitão Yevgeny Ivanov, um adido naval soviético, potenciando, assim, o risco de segurança pública.

8 –  A Feira Mundial de Nova York de 1964/1965, sobre a qual falo mais adiante, compreendia mais de 140 pavilhões, 110 restaurantes, 37 nações, 24 estados dos EUA e mais de 45 empresas. Anunciada como uma exposição “universal e internacional”, o tema da feira foi Peace Through Understanding, dedicado à “Realização do Homem em um Globo Encolhido em um Universo em Expansão”. A feira era na verdade uma vitrine da cultura e tecnologia americanas de meados do século XX.

9 – O Picturephone foi o primeiro aparelho de vídeo telefone comercializado no mundo. Fabricado pela AT&T e lançado na feira de tecnologia de Nova York em 20 de abril de 1964, foi colocado no mercado em 1969, porém, com os altos custos operacionais e as baixas vendas, a AT&T o retirou do mercado em 1971.

10 – Em 212 d.C., o imperador Caracala decretou que todo homem livre, habitante do Império Romano, onde quer que vivesse, da Escócia à Síria, era cidadão romano.

 

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