Casa das Garças

Um novo “Breton Woods”? – a grande ilusão

Data: 

18/11/2024

Autor: 

Pedro S. Malan

Veículo: 

Revista Inteligência

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*Este texto é produto de um depoimento a Christian Lynch e Luiz Cesar Faro, editores de Insight Inteligência, sobre temas de economia e política internacional 

DE VOLTA AO HOTEL MOUNT WASHINGTON?

O governo brasileiro está no exercício da Presidência do G20 neste ano de 2024. Como tal, definiu suas três grandes áreas ou questões de interesse para a reunião de cúpula do grupo no Rio de Janeiro neste ano: a aliança global contra a fome e a pobreza; a agenda do desenvolvimento sustentável (ESG), aí incluídas a transição energética e seu nexo com a mudança climática; e a reforma da governança global e de suas instituições. É deste último ponto que gostaria de tratar. Ouço frequentemente a reivindicação de uma nova governança global, porque esta e suas instituições não refletiriam mais a composição e o balanço de forças em um mundo hoje com mais de 190 países. Assim como ouço que a atual composição do Conselho de Segurança da ONU ficou obsoleta; que o G20 poderia se tornar o foro privilegiado da nova governança e que nele haveria algum espaço para maior protagonismo do Brasil; que teria chegado a hora, enfim, de um novo Bretton Woods. Terá mesmo chegado? Essas alterações são factíveis? Caso positivo, de que forma?

COMPREHENSIVE NATIONAL POWER

Para responder as perguntas anteriores, creio que vale expor o modo como nos últimos 80 anos, desde o Bretton Woods original, a política econômica tem interagido com a geopolítica e se refletido nas instituições da governança planetária. E como que nesse quadro complexo se encaixou o Brasil. As bases da moderna governança político-econômica do mundo do pós-guerra começaram no início dos anos 40, enquanto ainda se lutava na Europa e no Japão, e tiveram seu desfecho na Conferência de Bretton Woods, em 1944. Naquela época, os Estados Unidos já eram, de longe, não só a maior economia do mundo, mas também a maior potência militar. Mesmo a União Soviética nada tinha que se assemelhasse em matéria de capacidade de reunir aquilo que os chineses chamam de Comprehensive National Power, inclusive soft power. Foi, então, que se construíram as instituições políticas e econômicas que organizariam o mundo do pós-guerra, como as Nações Unidas, o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial. Saiu também dali, em 1947, o Acordo Geral de Tarifas de Comércio (GATT). Mas esses arranjos não ocorreram do nada. Os Estados Unidos mantinham conversações com a Inglaterra e a Rússia desde 1941, ajudando o esforço de guerra destes antes mesmo do ataque japonês a Pearl Harbour. Os norte-americanos tinham um projeto para o mundo do pós-guerra. Queriam acabar com as preferências imperiais de que a Inglaterra e a França gozavam com suas colônias. Desejavam a abertura do comércio e que as moedas dos principais países europeus fossem livremente conversíveis. Almejavam também uma Organização Mundial do Comércio e a existência de uma instituição que lidasse com as interações monetárias e financeiras internacionais, com regras claras e acordadas previamente, que ficaram conhecidas como os arranjos de Bretton Woods.
O MUNDO DE ENTÃO
O que era o mundo desse tempo? As instituições financeiras criadas por Bretton Woods instituíram, na partida, cotas para 44 países que seriam as bases para utilização do recurso do FMI. Por aqui é possível ver o que era mundo para a governança mundial então criada. Na Ásia, três países: a China, que ainda não era a comunista de Mao Tse Tung, mas a nacionalista de Chiang Kai-Shek; a Índia, a joia do Império Britânico, que incluía os atuais Paquistão e Bangladesh; e as Filipinas, protetorado norte-americano. No Oriente Médio havia apenas o Irã e o Iraque. Dois outros protetorados. Um meio russo, meio inglês; o outro, meio inglês, meio francês. Na África, também aos olhos dessa nova governança global, existiam apenas quatro países: a África do Sul, ainda um domínio do Império Britânico; o Egito, que já era formalmente independente, mas ainda muito controlado por Londres; Etiópia; Libéria… e acabou-se. Os países latino-americanos estavam lá (eram 19), mas eram percebidos internacionalmente como áreas de influência norte-americana. Tinha a Rússia, para a qual os Estados Unidos e a Inglaterra haviam incluído cotas na esperança de que, vitoriosa, ela seria uma parceira da nova ordem internacional. Não aconteceu, porque Stalin preferiu ficar apenas como membro das Nações Unidas, rejeitando participação no FMI, no Banco Mundial e no GATT.
O BRASIL (QUASE) PERTO DO CONSELHO DE SEGURANÇA
O que se extrai da primeira tabela de cotas do FMI é que a governança internacional da época – governança esta que funcionaria até o início dos anos 70 – nasceu da iniciativa dos Estados Unidos. Surgiu também dos interesses de relativamente poucas potências associadas, que detinham efetivamente o poder político e econômico do mundo daquele tempo. Diga-se de passagem, se houve um momento em que a inclusão do Brasil no Conselho de Segurança das Nações Unidas fosse talvez possível – não digo provável –, foi nesse instante. O Brasil entraria como aliado confiável e privilegiado dos Estados Unidos na América do Sul. Aqui temos de recorrer ao contrafactual. Se Franklin Roosevelt não tivesse falecido logo no início de seu quarto mandato e pudesse ter supervisionado, no lugar de Harry Truman a fundação das Nações Unidas; se o embaixador do Brasil em Washington, de quem ele era próximo, Oswaldo Aranha, tivesse sido eleito presidente da República no lugar de Dutra em 1945; se Stalin tivesse permitido; se os Estados Unidos tivessem convencido a Grã-Bretanha, que talvez exigisse como contrapartida a entrada também da África do Sul, ou da Índia depois de independente… Talvez a China de Kai-Shek não tivesse objeção, mas creio que Stalin teria. Eram muitos “se”, uma conjunção astral que não se verificou. De toda a forma, foi quando passamos mais perto do Conselho de Segurança. Trata-se de mero exercício especulativo de história alternativa sem maior interesse hoje. Como diria o poeta T.S. Elliot: “O que poderia ter sido é uma abstração/ que permanece, eterna possibilidade,/ num mundo apenas de especulação./ O que poderia ter sido e o que foi/ convergem para um só fim que é sempre presente.”
A MOEDA QUE VALIA OURO
O regime de Bretton Woods criou também um sistema de regras para a área monetária internacional baseado no padrão ouro-dólar, o chamado dólar gold standard. Desde 1934, em resposta à Grande Depressão, o presidente Franklin Roosevelt desvalorizou o dólar e estabeleceu um preço de US$ 35 por onça de ouro, que prevaleceu constante até o início dos anos 70. O argumento era de que, sendo o dólar tão bom quanto o ouro e absolutamente confiável, seria possível converter livremente dólar em ouro e vice-versa àquela taxa fixa. A partir de 1960 houve a admissão, pelos principais países europeus, da livre conversibilidade das suas moedas. Era uma aspiração americana desde meados dos anos 40 que enfim se realizava. O Japão tornou o iene conversível em 1964. O mercado internacional de capitais privados, moribundo desde a Grande Depressão, começou a funcionar com os eurodólares. Quanto ao sistema de padrão ouro-dólar conversível, ele durou até 1971, quando foi extinto pelo presidente Richard Nixon. O ouro tornou-se uma relíquia bárbara, e o mundo passou a dispor de um sistema de taxas flutuantes a partir de 1973. Ocorre que o novo sistema levou à perda das receitas de exportação em dólar dos países exportadores de petróleo, e a desvalorização do dólar entre 1971-1973 resultou na criação da OPEP e à contenção da sua oferta, quadruplicando o preço do barril de petróleo entre 1973-1974.
DO MILAGRE À REDENÇÃO
O que aconteceu com o Brasil? O país, que crescia em parte com base na captação de capitais externos, decidiu se endividar adicionalmente para evitar uma recessão pós 1973/1974. O valor da dívida externa escalou até o país se tornar insolvente no começo de 1982, junto com boa parte da América Latina. Ficamos patinando por toda a década. A inflação passou dos 100% no início de 1980, chegou a 1.000% em 1988/1989 e a 2.470% em 1993. Entre 1981 e 1992, tivemos sete anos de queda do PIB per capita. O Brasil fazia sucessivas cartas de intenções para o FMI, sempre alegando não ser possível cumpri-las. Criado em 1989, pelo então secretário do Tesouro norte-americano, Nicholas Brady, o Plano Brady tornou possível a renegociação da dívida. Após longas e difíceis tratativas iniciadas em 1991 e concluídas em 1993, surgiu um clima favorável para o restabelecimento das relações do Brasil com a comunidade internacional pública e privada. A designação de Fernando Henrique em maio de 1993 para o Ministério da Fazenda, o recrutamento de uma equipe extraordinária (Pérsio Arida, André Lara Resende, Edmar Bacha, Gustavo Franco, Murilo Portugal, Winston Fritsch, entre outros) e o lançamento do Plano Real, em 1994, deixaram claro para a comunidade internacional que o Brasil estava, enfim, mostrando ser capaz de equacionar seus problemas e indicar um rumo, com sentido de direção e de propósito.
OS MUITOS MUROS QUE CAÍRAM
Por volta de 1990, estava em curso outro marco da maior importância de reacomodação no sistema de governança mundial. Foi o grande rearranjo de placas tectônicas decorrente da queda do Muro de Berlim e do colapso do império soviético. Aqueles acontecimentos levaram todos os países que pertenciam ou orbitavam o extinto império a se integrarem na ordem econômica ocidental por meio de seus organismos financeiros, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. Ao mesmo tempo, os países-membros da então Comunidade Europeia resolveram acelerar sua integração econômica pelo lançamento de uma moeda comum, o euro, o que ocorreu em 1999. Começou a “era da grande moderação”, caracterizada pela perspectiva otimista de integração ou globalização do mundo em torno da democracia e do capitalismo, com a ampliação e fortalecimento dos organismos políticos e financeiros internacionais. Acreditava-se que a Rússia iria entrar no G7, convidada que foi a participar de parte das suas reuniões (o chamado G7 + Rússia). Foi nessa época também que se criou o G20 para enfrentar a crise asiática de 1998. O PIB da Indonésia tinha caído 14% em 1998 e a Rússia, declarado moratória. Um grande hedge fund chamado Long-Term Capital Management faliu, e temia-se, não sem razão, que o mesmo pudesse ocorrer com outros fundos do tipo. O presidente Bill Clinton convocou para uma reunião em Washington uma trintena de ministros da Fazenda e presidentes de bancos centrais. Propôs a criação de um grupo de países para discutir questões que transcendiam a esfera do G7. Foi assim que o G20 funcionou até 2008, com uma reunião semestral entre ministros da Fazenda e presidentes de bancos centrais.
A CHINA ENTRA NO JOGO
A transformação do GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio) na OMC (Organização Mundial do Comércio) foi um momento de inflexão da governança mundial do período, que assinalou a ascensão da China como um novo protagonista do comércio internacional. E como isso ocorreu? Graças ao gênio de Deng Xiaoping. Na década de 1920, ele e Zhou Enlai haviam sido enviados pelo Partido Comunista para morarem em Paris. Perceberam as diferenças de níveis de renda, estilos de vida, tecnologia. A China era um país paupérrimo. O século XIX lhe havia sido um desastre. Deng aprendeu a observar o que acontecia no entorno de seu país: no Japão, na Coreia, em Hong Kong. Logo que assumiu o poder na China em 1978, Deng passou um fim de semana em Cingapura, cujo rápido desenvolvimento o fascinava. Lee Kuan Yew, primeiro-ministro de Cingapura, lhe disse na ocasião que, com um bilhão de habitantes, a China poderia fazer mais e melhor do que o seu país. Depois de lhe sugerir estabelecer as primeiras zonas de processamento de exportações, recomendou também abrir o país para o resto do mundo, para atrair investimento direto e absorver tecnologia. Deng foi extraordinariamente bem-sucedido. Com a entrada da China no sistema de comércio internacional, foi como se o mundo começasse a transacionar com outro planeta. Meio bilhão de chineses em 15 anos se transformaram em trabalhadores e consumidores urbanos, com a vantagem comparativa dos salários mais baixos. Os chineses entraram para a OMC no início do ano 2000 (ano em que os Estados Unidos concederam à China o status de “Permanent Normal Trade Relations”, que tem até hoje) com extraordinário sucesso. Mas a Organização teve de adequar seu sistema de regras para admitir um ingresso daquela magnitude. Ou seja: o mundo vai se adaptando a essas questões, a diferenças políticas, a problemas de conflitos de interesse, mas também existem desenvolvimento econômico e significativas interações comerciais e de investimento.
ENFIM, PROTAGONISMO NO BANCO MUNDIAL
E o Brasil, o que fez nessa época? Quando cheguei ao Banco Mundial em 1986, o Brasil nunca, desde a criação do Banco, tinha tido uma posição na diretoria executiva. Desde os anos 40, tínhamos preferido manter uma posição permanente no FMI. Então, éramos representados no Banco Mundial por outros países em um sistema de rotação, ou por um colombiano, ou por um filipino. Mas foi possível garantir uma posição ao Brasil no bojo de uma discussão sobre aumento de cotas, que é a participação relativa de cada país. Trata-se de uma discussão complexíssima, porque todos os países querem elevar suas próprias cotas e seu poder de voto. Conseguimos avançar com todas as dificuldades e ter uma posição na diretoria executiva do Banco Mundial. Outros países fizeram o mesmo. A China várias vezes conseguiu aumentar sua posição. Mas isso não é possível com base no voluntarismo apenas. Há uma série de parâmetros e critérios que devem que ser levados em conta: PIB, reservas internacionais, posição do comércio, exportações, importações, participação em investimentos diretos. Não é um negócio decidido em bases puramente políticas, na base da conversa. Os parâmetros vão ser utilizados para definir qual será a contribuição, o aporte de capital de cada um. Eles têm de ser negociados, respeitados, depois ajustados, e sempre através de extensas e difíceis negociações multilaterais.
GRANDE COMPLACÊNCIA
A era inaugurada por volta de 1990 – a da “grande moderação” – terminou com a “grande complacência”. Foi um período de acúmulo de desequilíbrios insustentáveis de balanço de pagamento, de endividamento e déficits crescentes. Enquanto, em 2007, os EUA chegaram a ter déficit em conta corrente de 7% do seu PIB, a China registrou um superávit de 10% do PIB. Então, veio a crise de 2008. Até aquele momento, as crises financeiras eram consideradas como algo exclusivo de países em desenvolvimento. Dessa vez, porém, o próprio secretário do Tesouro americano reconheceu que parte da responsabilidade cabia aos Estados Unidos, como nação. O país havia se endividado demasiadamente (famílias, empresas e governo), permitindo que o seu sistema financeiro assumisse níveis irresponsáveis de risco e alavancagem. E a conclusão a que chegaram era a de que o processo de globalização tinha ido longe demais. Que as vantagens comparativas da China na exportação de produtos, produzidos por trabalhadores que recebiam uma fração do salário de um trabalhador americano, prejudicavam seus interesses nacionais. A importação de produtos asiáticos e a perda de postos de trabalho decorrente da desterritorialização da produção levou, assim, a um grande descrédito da intensidade do processo de globalização, que ademais acelerava a substituição de postos de trabalho menos qualificado pelo processo de robotização. A crise levou pela primeira vez o G20 a reunir chefes de Estado e de governo. Nesse encontro, em 2008, foi tomada uma decisão muito importante: promover uma expansão fiscal. Porque, quando há um colapso da confiança do setor privado, o público tem de entrar em campo para reativar a economia por meio de uma política econômica anticíclica. Só que nós, no Brasil, já vínhamos fazendo uma política pró-cíclica desde o final de 2006, em particular, durante o segundo mandato de Lula. Embora a economia estivesse crescendo, desejava-se que ela pudesse crescer ainda mais. Quando veio a crise, o Brasil teve de fazer uma política anticíclica de expansão em cima de uma política pró-cíclica, dando origem a problemas que surgiram no mandato da Dilma, que continuava perseguindo a fórceps a aceleração do crescimento.
PRESSÃO INFLACIONÁRIA
A ideia de uma política keynesiana de caráter mais permanente pressupõe estimular sempre a demanda para impulsionar a oferta, crescendo a economia da expansão simultânea de ambos. O problema é que, quando se faz uma expansão muito vertiginosa da demanda e a oferta doméstica não responde em prazo hábil, há pressões inflacionárias ou desequilíbrio nos pagamentos. É preciso, então, recorrer a importações para responder ao estímulo criado de demanda. Quando os países ricos responderam à crise da Covid com a sua grande expansão e não foi possível responder em tempo às demandas criadas, devido às interrupções na cadeia de suprimentos – falta de microprocessadores e restrições impostas pela própria pandemia –, houve uma grande pressão inflacionária no mundo, que ainda não foi totalmente resolvida. A inflação no Canadá chegou a 8% ao ano; nos Estados Unidos, 9%; na Europa, 10%; na Inglaterra, 11%; no Brasil, mais de 10%. Trata-se de um fenômeno inédito: uma alta global de inflação associada à simultaneidade de estímulos. As considerações de segurança energética, alimentar e militar fizeram repensar a conveniência de uma cadeia de suprimentos desterritorializada. Houve então uma mudança profunda, provocando o retorno de políticas protecionistas – que, se exageradas, podem pressionar ainda mais a inflação. Quando o governo eleva tarifa alfandegária, diz ao consumidor: “Você terá de pagar mais pelo produto, porque, além do custo de produção, terá de pagar o imposto de importação”.
TERRÁQUEOS DEMAIS PARA EMPREGOS DE MENOS
Que podemos esperar para os próximos anos? Um dos grandes desafios atuais do mundo é a explosão demográfica nas regiões mais pobres, somada ao envelhecimento das populações das regiões mais ricas. O mundo demorou milhares de anos para chegar ao seu primeiro bilhão de habitantes por volta de 1800, depois precisou de uns 100 anos para chegar a 1,6 bilhão; passamos depois, em meio século, para 2,5 bilhões; e, entre 1950 e 2000, pulamos para seis bilhões. Hoje somos 8,2 bilhões de terráqueos. Seremos 9 bilhões na década dos 2040, a maioria esmagadora em países em desenvolvimento. Em compensação, a população dos países ricos será decrescente ou estará estacionada. Em mais de duas dúzias de países africanos, a população que tem menos de 19 anos de idade representa mais da metade da população total. Quando se leva em consideração a extensão territorial, a dimensão, os conflitos étnicos, as possibilidades de pandemias de todo tipo, chega-se facilmente à conclusão de que a pressão imigratória da África sobre a Europa irá aumentar na mesma proporção da resistência que se organizará contra ela, jogando água no moinho da extrema-direita, como se vê em escala crescente em muitos países mais desenvolvidos. Para piorar, dificilmente haverá capacidade de absorção de mão de obra na velocidade requerida pelo crescimento demográfico, sobretudo devido ao avanço tecnológico que elimina postos de trabalho de baixa qualificação. A combinação de globalização e de avanço tecnológico dificulta sobremaneira que trabalhadores de mais idade que perdem o seu trabalho se recoloquem no mercado. É um processo irreversível.
O FUTURO É CADA VEZ MAIS PERIGOSO
Alfred Whitehead já dizia em 1926 que o negócio do futuro é ser perigoso (“It is the business of the future to be dangerous”). Quando li esse artigo pela primeira vez, traduzi a frase do inglês como “o futuro tem por ofício ser incerto”. Queria dizer que a incerteza engloba perigos, mas também os desafios e as oportunidades. Não deixei de notar, depois de o ler pela segunda vez, que a frase continuava da seguinte forma: “E está entre os méritos da ciência preparar o futuro para seus deveres”. Em dado momento, países como França, Alemanha e Estados Unidos resolveram não permitir que se alargasse a distância tecnológica entre eles e a Inglaterra e promoveram políticas com esse objetivo. O mesmo fez o Japão a partir da Revolução Meiji. No longo prazo, o verdadeiro motor do crescimento é o progresso tecnológico e a capacidade de inovação. Ambos têm implicações sobre emprego e sobre distribuição, que nem sempre são favoráveis. Schumpeter já dizia que a máquina capitalista é imbatível na disseminação de padrões de consumo de massa e na produção de riqueza, mas não é capaz por si só de distribuí-la. Para tanto, são necessárias políticas públicas e capital cívico. O que são as democracias progressistas do nosso tempo, senão tentativas de contrabalançar a tendência natural do capitalismo de reproduzir desigualdades e ampliar hierarquias? Daí a necessidade de instituições que evitem excessos de desigualdade de renda e riqueza, que levam a tiranos e demagogos de toda a ordem. O futuro do mundo depende de como seremos capazes de lidar politicamente com as questões de poder de inovação e tecnologia, tanto na área civil quanto militar, bem como as mudanças na demografia – ou seja, com essas forças mais telúricas, que operam a médio e longo prazo. Os últimos dados do IBGE apontam que nossa população, cuja taxa de natalidade é cada vez menor, será ultrapassada pela taxa de mortalidade daqui a 15 anos. E os custos do envelhecimento são monumentais.
Mas nós seguimos com nossa proverbial incúria ou imprudência a respeito do futuro. Como diria o Guimarães Rosa, o brasileiro acha que sobreviverá ao fim do mundo. O fato é que o futuro ficou mesmo perigoso. Antes eu traduzia “dangerous” por “incerto”. Mas hoje acho que é perigoso mesmo.
NÃO ESTAMOS MAIS EM 1944
Tudo pesado e repesado, voltamos à questão inicial. Na verdade, não se trata de perguntar se é necessário um novo Bretton Woods, mas se ele seria possível. A resposta é: não. Em Bretton Woods, o mundo era composto de 44 países liderados por algumas poucas potências. A conversa se dava entre o Tesouro americano e o Tesouro inglês, o Banco Central americano e o Banco da Inglaterra, alguns franceses, um ou outro europeu do Norte… Era um número limitado de países. Hoje em dia não é possível botar representantes de 190 países em uma sala. Não há necessidade e não serviria a nenhum propósito, a não ser produzir um comunicado genérico, sem qualquer diretriz útil para a coletividade. Pergunta-se ainda: seria possível alterar a correlação de forças hegemônica nos mecanismos da governança mundial? Eu sou muito cético acerca da viabilidade de todos esses clamores ou da viabilidade dessas demandas. Quando se fala em mudança da governança global, é preciso ter em mente que ela não depende da simples vontade dos atores, nem nasce de uma discussão teórica. Ela se organiza com base numa realidade concreta de poder e de influência. Sem dúvida, a desproporcional influência dos Estados Unidos e da Inglaterra estabelecida em Bretton Woods vem sendo reduzida desde então por razões óbvias: o resto do mundo se desenvolveu, não só na Europa, como a China e agora a Índia. O mundo mudou, vem mudando e vai continuar a mudar. Mas as transformações não são processos que se traduzem rapidamente e se convertem, por si só, em rearranjos da governança global. Em Bretton Woods foi rápido porque era uma reorganização de governança planetária decorrente de uma guerra. Agora nós não temos um final de guerra, mas seguramente temos um mundo que vai se alterando e um reequilíbrio de forças. Mas há instituições que já estão lá e elas não mudam rapidamente, a não ser em caso de cataclismos. As mudanças têm de ser discutidas, programadas. Não é possível destruir uma instituição sem ter muito claro o que vai ser colocado no seu lugar.
UMA AMBIÇÃO FRUSTRADA
Também olhando para o futuro da ordem hoje vigente, de minha parte, não vejo condições para que possa ocorrer no futuro previsível qualquer reformulação do Conselho de Segurança, ao menos para membros com poder de veto. A China veta a Índia; a Rússia veta a Alemanha; Argentina e México, de fora, vetam o ingresso do Brasil. Investimos muito tempo tentando o apoio dos 140 países que precisariam votar, mas eu não esperaria mais do que a obtenção de uma cadeira permanente, sem poder de veto. Dos 15 membros no Conselho hoje, há os cinco com poder de veto e mais dez que rotativamente têm lá assento sem aquele poder. O Brasil talvez pudesse, junto com a Índia, o Japão, a Alemanha, ter uma posição permanente, fora do rodízio. O Banco Mundial e o Fundo Monetário têm uma diretoria executiva, na verdade um conselho de administração, composto de mais de 20 membros. Cada qual representa vários países ao mesmo tempo. Talvez no Conselho de Segurança da ONU fosse possível ter algo semelhante: os cinco que têm poder de veto, mais os cinco ou seis que seriam permanentes (mas sem poder de veto) e mais alguns em rodízio, o que permitiria elevar o número de países representados para 20 e poucos. Devemos deixar o claro registro de nossas qualificações e esperanças, nesse assunto, mas não dedicar ao tema mais tempo e esforço do que ele merece. Continuemos a somar pontos e méritos para chegar lá algum dia. Nossa prioridade deveria ser a de tentar reviver a Organização Mundial de Comércio, que está moribunda.
QUEM DÁ AS CARTAS É O G7
Quanto ao G20, há quem acredite que ele substituiu o G7 como foro privilegiado de decisões. Ocorre que o G7 continua funcionando como sempre funcionou. Há décadas, o pessoal dos ministérios da Economia e dos bancos centrais dos sete países trabalha diariamente dentro de uma estrutura burocrática e assim continuará a ser por um bom tempo. Por trás do G7 estão os mesmos governos por trás do FMI e do Banco Mundial, que operam o Conselho de Segurança das Nações Unidas. O G20 não fará, portanto, o que o G7 definitivamente não queira. É uma ilusão imaginar que ele tenha se tornado um novo diretório, ampliado, de governança mundial. Para não falar de outras ilusões, como a utopia de que o BRICS ampliado, com Etiópia, União Africana e Irã, criará uma governança substitutiva à existente, de um vago “Sul Global”. Nem é exequível produzir ação coletiva útil em um grupo de países com uma composição tão heterogênea. Não se trata só de um esforço de diplomacia, que explora todas as convergências possíveis. Trata-se de obter uma interlocução na qual os países não estejam apenas preocupados em ganhos no curto prazo. Não digo que seja impossível. As pessoas podem modificar suas convicções pelo livre debate de ideias, diante de novos fatos, informações e evidências. Buscam, então, soluções de compromisso, e mudam de opinião. O fato, porém, é que é muito mais fácil reunir atores heterogêneos em uma coalizão de veto a um adversário comum do que fazê-los convergir em torno de uma agenda propositiva. A ação coletiva se torna incrivelmente mais complexa. Fica cada vez mais difícil construir um comunicado final que aponte para uma diretriz útil para o conjunto de países. O último comunicado final do G20, quando a Índia estava na presidência, tem quase 30 páginas. É uma tentativa de cada país encaixar lá no seu parágrafo alguma coisa que lhe convenha.
SÓ UMA BOA IDEIA NÃO BASTA
Vejam também a proposta aventada por alguns países de se criar um subgrupo de governança em torno das florestas, para também alterar ou tentar influenciar de forma mais efetiva a correlação de forças dentro da governança mundial. Os três países que têm as maiores florestas tropicais no mundo são Brasil, Congo e Indonésia. Não é nada claro como funcionaria um subgrupo desses? O mesmo raciocínio vale para os BRICS, agora ampliado. Igualmente é uma bela e generosa ideia fazer uma aliança global contra a miséria e a fome, tal como proposta pelo governo brasileiro. Em princípio todo mundo é a favor. Mas como ela funcionaria? Não basta insistir com os países ricos para que ofereçam recursos para tal. Da mesma forma, não é factível a curto e médio prazos substituir o dólar por qualquer outra moeda ou cesta de moedas nas transações financeiras e comerciais. O dólar continuará sendo o principal ativo internacional de reserva e a moeda-chave em uma das pontas das transações diárias com moedas internacionais. Além de representar mais de 60% das reservas internacionais. Em segundo lugar vem o euro. Não será por força de uma conferência que essa realidade mudará.
OS TRÊS CÍRCULOS CONCÊNTRICOS
A pergunta que deveríamos fazer é: o Brasil hoje tem condições de poder global suficientemente robustas para reivindicar um lugar de primeiro plano nessa suposta nova ordem mundial? Ter voz, prestígio, influência, sempre foi algo muito caro para a diplomacia brasileira. A persistente ambição brasileira de ter um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas é emblemático dessa busca. Mas como bem notou o embaixador Marcos Azambuja, em artigo recente da Revista do CEBRI: “Para ter maior acesso às múltiplas instâncias do poder mundial de modo consistente, o Brasil deve oferecer garantias de um comportamento que inspire ampla confiança à comunidade internacional. Que seu comportamento será responsável e construtivo e que não representaremos, em âmbito algum, qualquer tipo de ameaça significativa.” A assunção desse objetivo depende do que eu chamo de três círculos concêntricos. O primeiro deles é este, o global. Mas, para que seja possível exercer essa influência, é preciso que o Brasil seja visto e percebido pela sua própria região, a América do Sul, como um país que conta, que tem gravitas e que é respeitado por toda a sua vizinhança. Esse é o segundo círculo. O terceiro círculo é o da política interna. A respeitabilidade do Brasil no mundo, necessária para que suas aspirações internacionais sejam percebidas como justas, depende da forma como ele lida internamente com os seus inúmeros desafios domésticos: econômicos, sociais e político-institucionais. É muito difícil o país ter voz, prestígio e influência na sua região, se ele não é percebido pela comunidade internacional como capaz de tomar decisões adequadas dentro de casa. É assim que os três círculos interagem. Caso seja bem-sucedido, o país obtém a respeitabilidade de seus vizinhos, o que, por sua vez, legitima as aspirações a um maior protagonismo na cena mundial.
OPORTUNIDADES PERDIDAS
Constrangido pela correlação de forças internacional, o Brasil respondeu sempre às mudanças no cenário mundial dentro de suas possibilidades, tomando boas e más decisões. E nós, brasileiros, ultimamente não temos aproveitado as oportunidades para transmitir à comunidade internacional a confiança e a respeitabilidade referidas. A pretensão do Brasil de apresentar-se como mediador em vários conflitos se frustrou visivelmente. No conflito entre Rússia e a Ucrânia, a atribuição de responsabilidade recíproca pela invasão não fez sentido, quando houve um claro ato de invasão que violou a soberania e a integridade territorial de um país. Depois dessa declaração, a oferta de mediação se frustrou porque a Ucrânia já não tinha confiança em nós como um país claramente a favor do seu esforço por manter sua independência. O mesmo aconteceu no Oriente Médio. No caso particular com a Venezuela, foi ainda mais grave, porque perdemos uma extraordinária oportunidade de ter influência na região. O voluntarismo apenas não basta; é preciso ter musculatura adquirida ao longo do tempo e previsibilidade de um comportamento confiável. Só assim uma potência média como o Brasil pode aproveitar de forma incremental as oportunidades marginais que se apresentarem na correlação de forças do sistema internacional, aumentando sua presença na governança mundial.
AS LIÇÕES DE KISSINGER
Henry Kissinger deu uma entrevista um mês e meio antes de fazer 100 anos em que oferece três conselhos para candidatos a posições de liderança no plano internacional. Primeiro, “faça um esforço impiedoso para entender a situação em que você se encontra”. O que vale, a meu ver para uma pessoa, uma empresa, um país, um potencial líder. Segundo, dizia Kissinger, “Defina objetivos críveis e os meios e os instrumentos enunciáveis para torná-los viáveis e executá-los”. Terceiro, “leve sempre em conta os fatores domésticos do seu país”. Não se pode ter uma política externa dissociada das percepções que o resto do mundo possui sobre a sua situação interna. As pessoas precisam reconhecer as restrições que a realidade impõe. Lidar com as instituições não é um exercício de voluntarismo, principalmente, quando os atores e seus ânimos estão exacerbados. Sempre há uma configuração de força que transcende os atores. Para obter ganhos marginais e incrementais em termos de governança mundial, é preciso demonstrar que o país está sendo capaz de avançar nesse processo no seu próprio quintal. Eu acredito na força do exemplo, em efeito de demonstração. Aproveitar experiências-piloto que deram certo podem estimular outras e, com base naquela experiência, avançar, dar passos adiante. Sempre haverá alguma coisa que se pode fazer, na margem que seja, mas esse é um esforço que precisa ter continuidade, sentido de direção, prudência – com – propósito e visão de longo prazo.
O depoente é ex-ministro da Fazenda

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