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O regime fiscal de um país consiste em um conjunto de regras escritas, costumes e práticas que afetam o gasto público, a arrecadação tributária e a dívida pública. Compõem o regime fiscal as leis, como a de responsabilidade fiscal ou o teto de gastos; a jurisprudência construída em torno de questões fiscais pelos órgãos de controle e pelo Judiciário; os incentivos e regras não escritas que moldam a forma como o mundo político toma decisões orçamentárias; as relações fiscais entre os diferentes níveis de governo.
O tema é amplo e inclui dimensões quantitativas e qualitativas. Na quantitativa, tratada no presente artigo, a principal questão é se o déficit fiscal do país é sustentável ao longo do tempo. A base fundamental para um regime fiscal sustentável é intuitiva: o gasto e a dívida pública como proporção do PIB não podem crescer indefinidamente.
Em 1999, com a introdução do tripé macroeconômico (meta para inflação, câmbio flutuante e resultado primário positivo), tivemos uma mudança no regime fiscal, complementado pela Lei de Responsabilidade Fiscal (aprovada em 2000), que fixava metas para o resultado primário. Dado que a despesa era rígida e crescente, passou-se a equilibrar as contas da União mediante aumento da carga tributária.
Mas a disciplina imposta pela LRF teve vida curta, vítima de truques contábeis, desonerações e subsídios que reduziram a carga tributária. Ao se aproximarem as eleições de 2014 ocorreu o colapso final da responsabilidade, uma deterioração do primário federal de 4,7% do PIB, de um superávit de 2,2% do PIB em 2011 para um déficit de 2,5% em 2016.
Frente a essa situação, em 2016 foi proposto e aprovado o teto de gastos. Tratou-se de uma iniciativa para induzir uma mudança do regime fiscal do país pela via legal/constitucional. Na prática, sabia-se que o controle do crescimento da despesa dependeria de modificações nas leis que determinam o crescimento obrigatório de despesas, como as da Previdência e assistência social, assim como a folha de pagamento do Estado.
A percepção de que o teto poderia induzir um regime fiscal consistente contribuiu para reduzir a taxa de juros que os investidores requerem para aplicar em títulos públicos, o que diminuiu a despesa financeira da União e ajudou a desacelerar o crescimento da dívida. A forte redução de juros decorrente da parada súbita da economia, por causa da Covid 19, também ajudou a reduzir os juros e as despesas financeiras.
Mas, com o correr do tempo, os componentes legal, político, jurídico e federativo do regime fiscal, somados aos impactos econômicos e sociais da Covid-19, passaram a pressionar a despesa primária, que voltou a crescer em relação ao PIB. Seguidas emendas constitucionais foram aprovadas para elevar o teto e abrigar gastos adicionais, inclusive aquela ora em discussão.
Foi-se a âncora e entraremos em 2023 retomando a rota de insustentabilidade da dívida. Um simples exercício aritmético demonstra que o superávit primário necessário para manter a dívida pública estável está em 1,5% do PIB, um ajuste de 3% do PIB se o déficit de 2023 ficar em 1,5% do PIB. Para reduzir a dívida, seria necessário ampliar ainda mais o ajuste, algo que nos parece recomendável.
Os próximos governos, já a partir de 2023, não poderão abandonar o esforço de consolidação fiscal. Precisarão desenhar e aprovar uma regra crível, que ajude na mudança do regime fiscal em suas várias dimensões (legal, política, jurídica e federativa).
A ideia de regra fiscal se contrapõe à noção de discricionaridade. Em regimes fiscais frágeis, como o nosso, em que sempre há a tentação de se endividar “só mais um pouco”, a literatura sugere amarrar as próprias mãos, através de regras formais, que permitam o acompanhamento de metas e que, em caso de violação, imponham custos reputacionais e mecanismos automáticos de ajuste.
A regra fiscal tem a finalidade de definir o nível e a trajetória de gastos e receitas compatíveis com a sustentabilidade da dívida pública (sempre como proporção do PIB). Define também trajetórias de convergência de volta para esses níveis quando houver desvio.
No caso do Brasil, parece claro que é muito elevada uma dívida de 77% do PIB com tendência de alta. Um forte indício são as taxas de juros reais que o governo federal paga para se financiar, hoje em torno de 6,0%, um ponto fora de qualquer curva global. Como um primeiro passo, sugerimos ter como meta uma redução da dívida para 65% em 10 anos
Consideramos que a melhor forma de o fazer é por meio de uma regra de limitação do crescimento do gasto. A receita seria estimada para um horizonte de tempo e o gasto seria limitado de forma a atingir, na média, o superávit primário necessário para trazer a dívida ao nível desejado.
A LRF cumpriu o papel de âncora fiscal por um tempo, mas o ajuste era feito pelo lado da receita e mediante contingenciamentos. Com isso, o ajuste era procíclico, o crescimento da despesa seguia a sua escalada e induzia as ineficiências decorrentes do contingenciamento. Havendo efetiva limitação da despesa, o Orçamento poderia ser impositivo. Isso contribuiria para uma gestão dos recursos públicos mais previsível e eficiente.
Nesse modelo, teríamos um estabilizador automático dos ciclos econômicos. Caso houvesse uma recessão, a receita cairia e, mantido o nível dos demais gastos da regra fiscal, o déficit aumentaria, evitando uma contração fiscal. Cabe discutir, também, mecanismos automáticos da área social, como o seguro-desemprego, que no Brasil carecem de uma boa revisão.
Além disso, haveria maior espaço para fixar uma regra mais frouxa para o crescimento de gastos desde que, ex-ante, benefícios tributários fossem revogados ou se decidisse por aumento da carga tributária. Quanto mais ambiciosa a meta de redução de dívida, e menor o esforço de redução de benefícios fiscais, mais restritiva teria que ser a regra de crescimento da despesa.
Uma cláusula de escape permitiria gastar acima do teto em emergências. Mas logo em seguida o superávit primário necessário para estabilizar a dívida seria recalculado. Essa função de reação é importante e tem amplo amparo na teoria econômica e na história.
Estamos aqui propondo metas para a dívida e para o gasto público. Seria uma decisão política, baseada em uma análise de custos e benefícios. As metas serão atingidas mediante um planejamento plurianual em que, periodicamente, o limite de despesa se ajustaria aos parâmetros e projeções observados para a dívida e a receita. Portanto, nossa proposta resgata elementos das duas âncoras que duraram pouco tempo.
No momento, a dívida encontra-se acima do nível desejável, o que exige substancial correção no saldo primário. Os parâmetros quantitativos adotados devem induzir o início imediato do ajuste, evitando-se fixar limites inicialmente frouxos, que não imponham sacrifícios ao governante e aos legisladores do momento, jogando a conta para as gerações futuras e seus governantes.
Regra alguma tem o poder de blindar para sempre um ambiente macroeconômico propício ao desenvolvimento sustentado e inclusivo de uma nação. Isso posto, é nossa convicção que a regra proposta reforçaria bastante as chances de sucesso de uma estratégia de desenvolvimento do país.
(*) Um texto mais detalhado e técnico será circulado em breve
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