Casa das Garças

Um roteiro e certo barulho desnecessário

Data: 

07/07/2023

Autor: 

Gustavo Franco

Veículo: 

Exame

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A segunda melhor notícia do mês de junho foi no dia 14, quando a S&P anunciou que colocou o rating brasileiro em perspectiva positiva. A primeira foi a do PIB, de que trataremos a seguir.

Sobre o rating: notar, de pronto, que ainda não é o upgrade, e que faltam dois degraus para se chegar ao “grau de investimento”. Tivemos apenas o anúncio de que haverá uma revisão e com viés de alta. Ainda será preciso esperar que se confirme ao longo dos próximos seis a oito meses, que é o tempo médio entre a perspectiva e a efetiva alteração do rating, mas é dado como certo que vai acontecer, a menos de alguma surpresa muito ruim que, infelizmente, nunca se pode descartar.

Assim sendo, o normal é que a classificação de risco do país suba um degrau para o BB (hoje é um BB-). Tudo correndo bem, havendo boas “entregas”, como se fala na gíria corporativa, outra perspectiva positiva pode vir talvez ainda em 2023, inclusive das outras agências, mas com mais chance em 2024, como prenúncio ao grau de investimento (no nível mínimo, que começa no BBB-) ao longo de 2025.

É claro que muita coisa precisa acontecer, e do jeito certo para esse trajeto se confirmar. Mas é de se ter claro que essa dinâmica virtuosa do rating é absolutamente essencial para organizar a direção da política econômica e, mais especificamente, para afinar a viola entre o governo e o mercado.

O governo é de esquerda e historicamente se confunde em seus relacionamentos com o mercado e com os economistas ditos “ortodoxos” (o que significa “todos os outros”). Parece (mas não é) sem sentido, a busca pelos aplausos dessa comunidade a priori hostil às criatividades heterodoxas que viriam do campo de esquerda. Mas esse aplauso precisa existir, e a classificação de risco do país é uma ferramenta preciosa de conciliação. Se o Brasil atinge o “grau de investimento”, o bom humor do mercado, e da Faria Lima, será ensurdecedor e irresistível.

Em 2009, quando aconteceu da última vez, veio como grande surpresa o “grau de investimento”. O governo petista da ocasião nem sabia bem do que se tratava, mas a alegria foi tanta, que acabaram as divergências. O aplauso do mercado iguala os governantes, foi a máxima que emergiu dessa situação, e que se mantem em plena vigência.

A grande notícia de junho

A boa notícia do rating em junho de 2023 teve que ver, em grande medida, com a primeira e maior boa notícia do mês, o anúncio, logo no dia 1º, do crescimento do PIB no primeiro trimestre, logo no início desse governo, mas um período predominantemente governado por ações desencadeadas na administração anterior. Por isso, mesmo a “expressão corporal” do governo diante desse número era distintamente de afastamento.

Mas de onde se esperava algum material para o velho clichê da herança maldita veio o exato oposto. O PIB cresceu 1,9% nos primeiros três meses de 2023 em relação ao trimestre anterior, bem acima das expectativas projetadas. Na comparação com o mesmo período de 2022, o crescimento foi de 4%. Um sopro de otimismo, muito bem-vindo, varreu o país. A demanda por segurança econômica é gigante.

Mas a quem caberia o mérito?

A surpresa do PIB teve que ver com o agro, conforme observa o IBGE: na comparação com o trimestre anterior, houve alta espetacular na agropecuária (21,6%), resultado explicado principalmente pelo aumento da produção da soja, principal lavoura de grãos do país, que concentra 70% da safra no primeiro trimestre e deve fechar este ano com recorde.

O resultado foi excelente, mas o governo não comemorou.

Em sua coluna no jornal O Globo (de 03/06), o insuspeito Carlos Alberto Sardenberg usou a expressão muito bem achada “pibão desconfortável” para descrever o fenômeno. Como o número para o PIB foi totalmente devido ao agro, não havia um pingo de dúvida de que o governo atual tinha pouco que ver com o resultado.

É claro que há mais que isso na decisão da S&P, mas não muito mais. É normal que as agências, bem como outros observadores e líderes internacionais, adotem um olhar condescendente para o país que emerge da eleição um tanto machucado, talvez fraturado politicamente, mas ansioso por bons desígnios para a economia.

O comunicado da S&P enxerga “sinais de maior certeza de estabilidade das políticas fiscal e monetária” talvez um tanto prematuramente. O comportamento da torcida compreende certa indicação sobre os rumos a seguir. Melhor acolher os bons conselhos, pois começa a funcionar um círculo virtuoso de upgrades e iniciativas de política econômica. O governo precisa fazer a sua parte e não perder o timing.

Reforma tributária e arcabouço fiscal

A S&P, como o conjunto dos observadores da cena macroeconômica brasileira, enxergou o “arcabouço” como um passo na direção certa. Entretanto, a nova política fiscal, ou o novo “teto de gastos”, é majoritariamente visto como insuficiente para estabilizar a dívida pública, inclusive em vista de suas próprias metas. O Senado alterou algumas de suas disposições, de tal sorte que o projeto deve retornar à Câmara para ser rediscutido. O assuntou não terminou, portanto, e ainda há o que aperfeiçoar.

A jornada legislativa do governo parece cheia de incertezas, mas não há como escapar. O arcabouço já andou um bom caminho, é muito provável que tenha sua redação definitiva em breve, e sem maiores danos. A próxima atração, já iniciada, é a reforma tributária, a segunda de duas grandes prioridades anunciadas pelo ministro Haddad em seu primeiro dia de trabalho.

O relator da reforma tributária na Câmara, deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), apresentou no dia 22/06 o relatório da proposta de emenda à Constituição (PEC) que dará início à reforma tributária, prevista para ser votada na primeira semana de julho. Uma longa discussão parece se iniciar. Paradoxalmente, todos reconhecem a complexidade das “soluções simplificadoras” da reforma. Não é tarefa fácil. O assunto já empacou no passado, portanto, não há nenhum certeza sobre o desfecho.

Outros temas tributários devem se misturar aos da reforma, que estaria limitada aos impostos indiretos, e tudo isso se observa em um contexto no qual o governo precisa de 150 a 200 bilhões nesse ano fiscal de 2023 para atingir as metas de despesa e dívida que fixou para si.

Parece muito concreta, portanto, a perspectiva de uma pacote tributário e de um aumento relevante na carga tributária, a despeito das negativas. Uma vez afastado, em princípio, o fantasma do descontrole da dívida pública, mercê do arcabouço, o próximo grande risco fiscal, ao que tudo indica, está associado aos impostos. Risco de aumento de impostos de efeitos desestabilizadores.

O ministro da Fazenda parece ansioso em se abraçar a medidas tributárias progressistas, que melhor assentam a um governo e a um discurso de esquerda, mesmo que não façam muto sentido. Mas é preciso cautela.

A ideia de buscar o investment grade parece encantar as autoridades econômicas, e assim domar os instintos keynesianos do governo, mas sua consequência direta é similar à de levar as agendas reformistas do governo para o terreno tributário. É nesse domínio onde o governo deverá buscar as chaves retóricas para o que parece lhe sobrar como a única alternativa para fechar suas contas sem perder a sua alma de esquerda.

Selic ainda estável

Nada se passou com a taxa de juros, o COPOM não iniciou o ciclo de baixa, que se espera que comece em agosto ou setembro, no mais tardar. Faz todo sentido imaginar que esse ciclo se sobreponha ao restante dos mandatos de Roberto Campos Neto, e outros dois dirigentes do Banco Central do Brasil, que terminam em dezembro de 2024. Sintomaticamente, a ata do COPOM de 20/21 de junho decidiu por elevar o seu conceito de “taxa neutra” de 4,0% para 4,5%.

Como interpretar esse “movimento”? Seria uma indicação de onde vai aterrissar a SELIC ao final desse ciclo de baixa que deverá terminar próximo a dezembro de 2024?

O CMN finalmente deliberou sobre a meta para 2026, e não mexeu no que está estabelecido para 2023 e 2024. O assunto da “meta contínua” acabou sendo, como na expressão shakespeariana, um barulhão à toa (Much ado about nothing).

*Gustavo Franco é sócio-fundador da Rio Bravo Investimentos e ex-presidente do Banco Central do Brasil. Este artigo faz parte da Carta Estratégias de maio relatório mensal distribuído pela Rio Bravo a seus clientes e reproduzido com exclusividade pela EXAME Invest.

 

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