Casa das Garças

O inglês da Tijuca

Data: 

27/11/2016

Autor: 

Gustavo Franco

Veículo: 

O Globo e O Estado de São Paulo

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Monteiro Lobato tinha ideias muito adultas nos assuntos de economia e um de seus porta-vozes mais interessantes era o personagem que dá título a este artigo. Este seu rabicundo amigo imaginário, nascido em Hull em 1872, educado em Cambridge, “pensava em linha reta e via com nitidez: daí o ser olhado de esguelha pelos que viam torto e pensavam com teias de aranha.”

Os diálogos entre Lobato e John Irving Slang (Mr. Slang) foram publicados em crônicas, depois reunidas em livro em 1927. Em 1932 o personagem reaparece na coletânea de Lobato sobre sua longa temporada nos EUA, mais agudo do nunca.

Mr. Slang transformava cada detalhe da vida brasileira em uma diatribe. Em sua primeira aparição em 1927 somos informados que se tratava de pacato amante do orquidismo, mas, conforme corrigiu Lobato, seu interesse verdadeiro era algo assemelhado, o “parasitismo social”. A atualidade de Mr. Slang, a ver adiante em 5 passagens, é um monumento ao nosso atraso.

Primeiro exemplo: de sua varanda avistava uma velha caixa d’água roida pela ferrugem, a propósito da qual, como se estivesse falando na PEC do Teto, observou:

– Sempre que a vejo tenho a sensação física dos orçamentos do Brasil. O orçamento do Brasil compôe-se de uma torneira como aquela, a Receita, e de uma infinidade de “ladrões” por onde a água escapa. Sabe o que é um “ladrão” em técnica hidráulica?

Segundo exemplo, a propósito de impostos, parecendo refletir sobre a sentença do CARF contra Gustavo Kuerten:

– O sistema tributário do Brasil, não contente de tomar dinheiro, toma também esforço. Cobra duas vezes, uma em moeda, outra em energia humana. Ficou ele com a mesma psicologia colonial. Daí a sua forma de castigo ao trabalho, de empeço aos movimentos livres. Não é amarrando um homem e embaraçando-lhe todos os movimentos que esse homem ganhará corridas no steeple-chase (corrida de obstáculos) internacional.

Terceiro, sobre o comércio internacional, parece provocar a Fiesp:

– A humanidade somente progride dentro do respeito às leis biológicas. A concorrência é a lei biológica do progresso. E o que é o protecionismo senão essa força estranha que impede a vitória do melhor e protege o pior? O protecionismo não protege a indústria e sim, apenas, a incapacidade industrial. Que que vantagem há para um país em criar no seu organismo este inchaço simulador de músculo? O protecionismo enriquece alguns indivíduos mas empobrece a comunidade.

Quarto: sobre o velho clichê segundo o qual o Brasil é um país muito jovem, daí os erros.

– País novo! Vejo esta razão apresentada muito amiude, como uma das fórmulas, uma das frases feitas do brasileiro. Já meditou sobre ela? O Brasil é velho, meu caro, é um dos povos mais velhos do mundo. Idade, nas pessoas e nos povos, não se calcula pelo número de anos. Dê-me um rapazola, seu patrício, que não pense com cérebro de 70 anos, e que ao sair de uma escola superior não aspire a entrar na vida “já aposentado”, isto é, que não aspire colocar-se num dos quadros do monstruoso parasitismo burocrático que aqui rói, como piolheira, o trabalho dos que trabalham.

Quinto: a conjuntura política era difícil em 1927, denúncias de corrupção estavam em toda parte. Referindo-se a Washington Luis, que sucede Arthur Bernardes, que tomam como desonesto, Lobato pergunta:

– Acha, Mr. Slang que o novo presidente, sendo um valor moral, conseguirá restabelecer a moralidade no Brasil?

– Não acho. Poderá iniciá-la apenas. O trabalho reconstrutivo é lento e não cabe nas forças de um homem. Enquanto perdurar no organismo administrativo a ação dos elementos amorais, nele sistematicamente embutidos durante o período ciclônico, o Brasil não recuperará a saúde moral. Contra um mau ministro do Supremo Tribunal, com 10 ou 20 anos de vida, que poderá o senhor Washington Luis, que dentro de 3 e pouco não será mais governo?

Bem, o Brasil de que fala Mr. Slang é o de 1927: hoje é tudo diferente, não é mesmo?

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