Brasil não lidou bem com a ideia de que há limites à ação do Estado


Ex-ministro da Fazenda analisa o cenário econômico do país e fala sobre aprender com acertos e erros do passado

Pedro Malan é um raro brasileiro cujo nome pode vir antes da credencial, e todos sabem quem é. Ex-ministro da Fazenda, ex-presidente do Banco Central, atualmente presidente do Conselho Consultivo Internacional do Itaú Unibanco, há tempos Malan decidiu quebrar o estereótipo do palpiteiro, pronto a dar diagnósticos sobre erros e acertos dos sucessores — uma postura admirável, mas também um desafio para jornalistas.

Suas entrevistas são raras, para não dizer inexistentes. Sua contribuição para o debate econômico nacional, costuma dizer, são artigos publicados no jornal O Estado de S. Paulo. A coluna tenta há dois anos entrevistar Malan. Neste mês, convidado para o Fórum da Liberdade, em Porto Alegre, o ex-ministro finalmente concordou. Conversou, foi simpático, mas preferiu responder por escrito, a mão, durante o voo de volta para o Rio de Janeiro.

Leia a entrevista:

Ganhou força o debate sobre a eficácia do juro básico no Brasil, que tem quase duas décadas de sistema de meta de inflação. Na sua avaliação, a taxa Selic ainda funciona como reguladora de preços e incentivadora de crédito ou perdeu parte da eficácia?

A função da Selic, no sistema de metas, é a de afetar o processo de formação de expectativas quanto ao curso futuro da inflação, buscando a convergência para o centro da meta (no horizonte temporal relevante). A eficácia da política monetária em alcançar este objetivo depende de consistência com a política fiscal e do peso relativo do volume do crédito direcionado através de bancos públicos, com taxas subsidiadas, em muito inferiores à taxa Selic, e, portanto, por esta não diretamente afetadas.

Em caso positivo, o que deve ser feito: tomar medidas para devolver a eficácia à política monetária ou o país precisa de novos instrumentos?

A resposta à pergunta anterior, portanto, é sim, se, como dito acima, a situação fiscal (fluxos de despesas e receitas e estoque de dívida estão sob controle de forma crível), e se as taxas do crédito direcionado guardam alguma relação com a Selic (e não muito distante), ou seja, variam levando em conta a Selic e o mercado de juros futuros.

Em qualquer caso, vê a transformação de TJLP para TLP como medida de correção nesse sentido?
Sim, a transformação da TJLP em TLP passa a gradualmente refletir mais as informações de mercado, aumentando, na margem, a potência da política monetária e a eficácia com que pode cumprir o seu papel fundamental.

Esse pode ser o início de um processo de redução da BNDES-dependência?

Pode ser, se estimular os empréstimos de prazo mais longo por parte de instituições financeiras privadas, o que na nossa situação atual exige reformas mais amplas e implementadas de forma sustentada como a PEC dos gastos, as reformas da Previdência e tributária, a recuperação fiscal de Estados insolventes e a retomada do processo de concessões ao setor privado na área de infraestrutura.

Como ex-presidente do Banco Central, vê necessidade de mudar o mandato da instituição, hoje centrado apenas na inflação para algo semelhante ao duplo mandato do Federal Reserve?

Não é preciso ter um mandato formal e dois objetivos para um instrumento. O Banco Central do Brasil já leva em conta, na prática, e há muito, o “balanço de riscos” entre o curso esperado da inflação e a diferença entre o produto real e o produto potencial (hiato de produto, que capta, em parte, o fenômeno do desemprego), além do nível de incerteza sobre a situação fiscal. É isso que está permitindo a expectativa de redução expressiva das taxas de juros nominais e reais ora em curso.

Em seus artigos, o senhor tem se dedicado a expor o que caracteriza como “pressão estrutural por gastos públicos”, listando como fontes o fato de o Brasil ser a terceira “democracia de massa” do planeta, e as necessidades de infraestrutura física e humana. Como conciliar essas necessidades com a premência no equilíbrio das contas públicas?

Em meus artigos, tenho procurado chamar atenção para três processos de mudança de longo prazo que marcaram nossas últimas décadas e que continuarão marcando nossas décadas futuras. Ao longo de décadas passadas, as intensidades do crescimento demográfico e do processo da urbanização nos transformaram no que somos hoje, a terceira maior democracia de massas urbanas do mundo (depois da Índia e dos EUA).

E que isto levou, leva e levará a contínuas pressões por aumento de gastos públicos, em especial nas áreas de infraestrutura física e humana, que exigem respostas de governos, respostas que são vistas entre nós como necessariamente “intensivas em Estado”. Como conciliar essas expectativas de mais intensa ação do Estado com “a premência” no equilíbrio dos gastos públicos da União (e de muitos Estados e de muitos municípios) é o grande desafio a enfrentar na próxima década.

O que exige algo ao qual não estamos muito habituados: fazer escolhas, definir com clareza as prioridades, porque quando tudo é prioritário, porque desejável, nada é realmente prioritário. O país não lidou bem no período recente com a ideia de que há claros limites à ação do Estado. Vamos ter de fazê-lo agora.

O senhor também adverte que o Brasil está diante do risco de um “futuro adiado”, a exemplo das décadas de 1980 e 1990. Muitos economistas voltaram a usar a expressão “década perdida”. Na sua avaliação, perdemos a década de 2010?

Usei a expressão “futuro adiado” assim entre aspas, porque este é o subtítulo de um belo livro de Miriam Leitão intitulado A Verdade é Teimosa, cuja leitura recomendo a todos os interessados no futuro do Brasil. Assim como recomendo os excelentes Anatomia de um Desastre, de Claudia Safatle, João Borges e Ribamar Oliveira, além do primeiro desta fornada que foi lançada, o belo Como Matar a Borboleta Azul— Uma Crônica da Era Dilma, de Monica de Bolle.

Dito isto, e em parte, porque livros como estes estão sendo publicados, não acho que a década de 2010 tenha sido perdida, se o país tiver conseguido aprender com os erros cometidos na era pós-PAC, que Eduardo Giannetti definiu com felicidade como Programa de Abuso da Credulidade (no almoço de abertura do Fórum da Liberdade, em Porto Alegre, do qual Malan participou).

Está por estrear um filme sobre o Plano Real. O senhor está pronto para se ver como personagem da história do Brasil?

Acho que o núcleo básico das pessoas que trabalharam com FHC à época do lançamento do Real deram uma contribuição importante ao país: uma moeda (que já dura mais do que o regime militar), e que, espero, tenha vindo para ficar como a nossa moeda definitiva, com a estabilidade de seu poder de compra preservado por políticas monetária e fiscal consistentes e compatíveis — o que exige reformas estruturais do tipo das que o país tenta e terá de realizar, de olhos postos no futuro, que é o que importa agora. O passado é uma terra estrangeira, a ser visitado por novas gerações interessadas em aprender com acertos — e com erros do passado.